#footer { width:660px; clear:both; margin:0 auto; } #footer hr { display:none; } #footer p { margin:0; padding-top:15px; font:78%/1.6em "Trebuchet MS",Trebuchet,Verdana,Sans-serif; text-transform:uppercase; letter-spacing:.1em; }

quarta-feira, agosto 25, 2004

ALICERÇANDO POESIA #3 - CAMÕES


Canção X


Vinde cá, meu tão certo secretário,
Dos queixumes que sempre ando fazendo.
Papel com quem a pena desafogo!
As sem-razões, digamos, que, vivendo,
Me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
Acenda-se com gritos um tormento
Que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
A Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
A quem já muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora;
Mas, já que pera errores fui nascido,
Vir este a ser um deles não duvido.
Que pois já de acertar estou tão fora,
Não me culpem também se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei..
Falar e errar, sem culpa livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me
Não se alcança remédio; mas quem pena
Forçado lhe é gritar, se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
A voz pera poder desabafar-me,
Porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará, sequer, que fora mande
Lágrimas e suspiros infinitos,
Iguais ao mal que dentro na alma mora?
Mas quem pâde aigúa hora
Medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
A ira, a mágoa, e delas a lembrança,
Que é outra dor por si mais dura e firme.
Chegai, desesperados, pera ouvir-rne,
E fujam os que vivem de esperança
Ou aqueles que nela se imaginam,
Porque Amor e Fortuna determinam
De lhe darem poder pera entenderem,
À medida dos males que tiverem.

Quando vim da materna sepultura
De novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelizes obrigado;
Com ter livre alvedrio, mo não deram,
Que eu conheci mil vezes na ventura
O milhor, e o pior segui, forçado.
E, pera que o tormento conformado
Me dessem co'a idade, quando abrisse,
Inda menino, os olhos, brandamente,
Mandam que, diligente,
Um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
Com úa saudade namorada;
O som dos gritos que no berço dava,
Já como de suspiros me soava.
Co'a idade o Fado estava concertado;
Porque, quando, por caso, me embalavam,
Se versos de amor tristes me cantavam,
Logo me adormecia a natureza,
Que tão conforme estava co'a tristeza.

Foi minha ama úa fera; que o destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome pera mim; nem a haveria.
Assim criado fui, por que bebesse
O veneno amoroso, de minino,
Que na maior idade beberia,
E, por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
Daquela humana fera tão fermosa,
Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança;
De quem eu vi depois o original,
Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
Mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal,
Que se vangloriava todo o mal
Na vista dela; a sombra, co'a viveza,
Excedia o poder da Natureza.

Que género tão novo de tormento
Teve Amor, que não fosse, não somente
Provado em mim, mas todo executado?
Implacáveis durezas, que o fervente desejo,
Que dá força ao pensamento,
Tinham de seu propósito abalado,
E de se ver, corrido e injuriado;
Aqui, sombras fantásticas, trazidas
De algúas temerárias esperanças;
As bem-aventuranças
Nelas também pintadas e fingidas;
Mas a dor do desprezo recebido,
Que a fantasia me desatinava,
Estes enganos punha em desconcerto;
Aqui, o adevinhar e o ter por certo
Que era verdade quanto adevinhava,
E logo o desdizer-me, de corrido;
dar às cousas que via outro sentido,
E para tudo, enfim, buscar razões;
Mas eram muitas mais as sem-razões".

Não sei como sabia estar roubando
Cos raios as entranhas, que fugiam
Por ela, pelos olhos sutilmente!
Pouco a pouco invenciveis me saíam,
Bem como do véu húmido exalando
Está o sutil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Deste nome de belo e de fermoso;
O doce e piadoso
Mover de olhos, que as almas suspendia
Foram as ervas mágicas, que o Céu
Me fez beber; as quais, por longos anos,
Noutro ser me tiveram transformado,
E tão contente de me ver trocado
Que as mágoas enganava cos enganos;
E diante dos olhos punha o véu
Que me encobrisse o mal, que assi creceu,
Como quem com afagos se criava
Daquele para quem crecido estava.

Pois quem pode pintar a vida ausente,
Com um descontentar-me quanto via,
E aquele estar tão longe donde estava;
O falar, sem saber o que dezia;
Andar, sem ver por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal m'atormentava
E aquela dor que das Tartáreas águas
Saiu ao mundo, e mais que todas doe,
Que tantas vezes soe
Duras iras tornar em brandas mágoas;
Agora, co furor da mágoa irado,
Querer e não querer deixar d'amar,
E mudar noutra parte por vingança
O desejo privado de esperança,
Que tão mal se podia já mudar;
Agora, a saudade do passado
Tormento, puro, doce e magoado,
Fazia converter estes furores
Em magoadas lágrimas de amores?

Que desculpas comigo que buscava
Quando o suave Amor me não sofria
Culpa na causa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
O medo do tormento que ensinava
A vida a sustentar-se, de enganado.
Nisto ua parte dela foi passada,
Na qual se tive algum contentamento
Breve, imperfeito, tímido, indecente
Não foi sendo semente
De longo e amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
Estes passos tão vãmente espalhados,
Me foram apagando o ardente gosto
Que tão de siso n'alma tinha posto,
Daqueles pensamentos namorados
Em que eu criei a tenra natureza,
Que ao longo costume da aspereza
Contra quem força humana não resiste,
Se converteu no gosto de ser triste.

Destarte a vida noutra fui trocando;
Eu não, mas o destino fero, irado,
que eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
Passando o longo mar que ameaçando
Tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora exprimentando a fúria rara
De Marte, que cos olhos quis que logo
Visse e tocasse o acerbo fruto seu
(E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo);
Agora, peregrino vogo e errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhe diante
Ua esperança em vista de diamante,
Mas quando das mãos cai se conhece
Que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piedade humana me faltava,
a gente amiga já contrária via,
no primeiro perigo; e, no segundo,
terra em pôr os pós me falecia
ar para respirar se me negava,
e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
nascer para viver, e para a vida
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
nem perigos nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse, atado à grã coluna
do sofrimento meu, que a importuna
perseguição de males em pedaços
mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tantos males como aquele que,
Depois da tormentosa procela,
Os casos dela conta em porto ledo;
Que inda agora a Fortuna flutuosa
A tamanhas misérias me compele,
Que de dar um só passo temho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
Nem bem que me faleça já pretendo,
Que para mim não val astúcia humana;
Da força soberana,
Da Providência, enfim, divina, pendo.
Isto que cuido e veijo, às vezes tomo
Para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Senão memória dos passados anos,
As águas que então bebo, e o pão que como,
Lágrimas tristes são, que eu nunca domo
Senão com fabricar na fantasio
Fantásticas pinturas de alegria.

Que, se possível fosse que tomasse
O tempo pera trás, como a memória,
Pelos vestígios da primeira idade,
E, de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse
Pelas flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação Ieda e suave
Onde úa e outra chave
Esteve de meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A fermosura, os olhos, a brandura,
A graça, a mansidão, a cortesia,
A sincera amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra aigúa não vi mais.
Ah! vãs memórias! onde me levais
O fraco coração, que ainda não posso
Domar este tão vão desejo vosso?

No mais, Canção, no mais; que irei falando,
Sem o sentir, mil anos. E se acaso
Te culparem de larga e de pesada,
- Não pode ser - lhe dize - limitada
A água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co'o gosto do louvor, mas explicando
Puras verdades já por mim passadas.
Oxalá fora fábulas sonhadas!


Camões