Alicerçando Palavras # 29 - Augusto Abelaira
- Tenho uma turma difícil. – Maria José, depois do jantar, admirada subitamente por nunca lhe haver falado nisto. Arriscando: - É estranho que eu esteja quase a meio do ano e que... – Não se atreve a encarar o marido, não se atreve mesmo a terminar a frase.
Embora com a atenção distante, ele compreendeu. Mas receia a conversa, o cansaço do diálogo, a obrigação de se fingir atento, encontrando as palavras necessárias – amanhã começará a conversar com a Zé, a conversar como conversa com toda a gente, a conversar como só com ela não é capaz. Mas desde quando reduziu ao mínimo esses diálogos? A menos que seja isto: as mulheres não são para se falar com elas, são apenas para ir para a cama, são apenas para se lhes falar quando ainda se não foi com elas para a cama.
Maria José (mulher, portanto simplesmente destinada à cama?):
- Sabes o que isso significa? – Calou-se. “Que entre nós não há intimidade. Mas como ele pareça espantado (dir-se-ia que não esteve a ouvir), regressa de novo ao porto inicial. – Que achas? De resto, os outros professores não se queixam, sinto-me envergonhada. No ano passado, nunca to disse?, puseram-me um gafanhoto na sala.
- Podia ter entrado pela janela... – Esta mulher alta e loiro com quem muitos anos antes conversou cheio de felicidade, que veste uma camisola azul-escura de lã, que tantas vezes lhe esteve nos braços (nua e nessa semiconsciência em que se afundam os corpos nus ao fim de alguns momentos de luta), é professora, ensina inglês e alemão no liceu. Certo dia há-de sentar-se (se é que já não se sentou) mais distraidamente, os alunos observar-lhe-ão as pernas nem muito brancas, nem muito morenas, e com uma cicatriz no joelho (não darão pela cicatriz, consequência de uma queda de biciclete – só os dedos do Osório a conhecem), pensarão e dirão coisas obscenas. Osório lembra-se de uma professora – já lhe perdeu o nome – que, enquanto explicava a lição, tinha o hábito de se encostar, e de frente, aos cantos das carteiras. Certo dia, Osório pintou-os a todos com giz; como de costume, ela encostou-se, e quando se afastou tinha uma grande aranha branca na saia, um palmo abaixo da fivela vermelha do cinto.
- Ataram-lhe uma linha às patas. Pus ao acaso um dos rapazes na rua. Ao acaso como faziam os nazis com os reféns.
- Nunca fui professor, que queres que te diga? – Para mais, ainda conservava dos velhos tempos do liceu um ódio quase mortal, e sob muitos aspectos injusto, pelos professores sobretudo pelas professoras.
- Sabes a razão porque chamo e estendo um aluno ao acaso? Porque creio na consciência deles...
Repara melhor na camisola da Maria José. Azul-escura, ficando-lhe muito bem. Como nunca lha tivesse visto, esteve quase a perguntar se era nova, mas receou (não seria a primeira vez) ouvir esta resposta: “É velha, tu é que nunca deste por ela, nunca dás por mim. Estou farta de a pôr”. Poderia até mostrar-lhe um cotovelo meio roto.
- Sentem-se responsáveis quando um colega é injustamente castigado e portam-se menos mal enquanto se lembram. Não é criminoso abusar da consciência de quem a tem? Endireita a gravata! – diz, interrompendo-se. E depois, como se estivesse anonimamente ao telefone, ameaçadora: - Sempre vamos ao cinema? Arranjo-me num instante...
(Março 1965)
Augusto Abelaira, Enseada Amena, Livraria Bertrand, Lisboa, 1966
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