Alicerçando Palavras # 53 - Leão Tolstoi 1828/1910
Tolstoi
GUERRA E PAZ
Capítulo XII
Desde que foi descoberta e provada a lei de Copérnico, basta o facto de se reconhecer que não é o Sol, mas a Terra, que se move para toda a cosmografia dos antigos ficar aniquilada. Rebatendo este sistema, podia regressar-se à antiga opinião sobre o movimento dos corpos, mas sem isso não era possível, ao que parece, continuar o estudo do mundo de Ptolomeu. No entanto, mesmo depois da descoberta do sistema de Copérnico, o mundo de Ptolomeu continuou a ser por muito tempo objecto de estudo.
Desde que se provou que a percentagem de nascimentos e de crimes está sujeita a leis matemáticas e que certas condições geográficas, políticas ou económicas definem tal ou qual forma de governo e certas relações entre a população e a Terra são as causas dos movimentos do povos, as bases sobre que se edificava a história caíram por terra.
Repelindo as leis novas, era possível conservar a antiga opinião acerca da história, mas, não o fazendo, parecia impossível continuar o estudo dos acontecimentos históricos admitindo serem estes produzidos pelo livre arbítrio dos homens, pois, se, graças a certas condições geográficas, etnográficas ou económicas, se forma qualquer constituição ou se produz qualquer movimento de um povo, não poderia examinar-se como causa a vontade daqueles homens a quem nós imaginamos estabelecendo uma constituição ou incitando o movimento de um povo.
No entanto, a história antiga continua a ser estudada com as leis da estatística, da geografia, da economia política, da filologia comparada e da geologia, as quais contradizem rotundamente o citado princípio.
Durante muito tempo houve na filosofia física uma luta pertinaz entre as correntes antigas e as modernas. A teologia defendia o ponto de vista antigo e acusava o novo de atacar a revelação. Mas quando a verdade venceu, a teologia estabeleceu-se no novo terreno com a mesma firmeza de antes.
Existe igualmente uma luta tenaz nos tempos actuais entre a velha e a nova opinião no domínio da história, e a teologia defende igualmente a velha corrente e acusa a nova de destruir a revelação.
Tanto num como no outro caso e tanto de uma parte como da outra, a luta provoca paixões e asfixia a verdade. Por um lado, surge o medo e a compaixão pelo edifício erecto através dos séculos; pelo outro, a paixão de destruir.
Os homens que lutavam contra a verdade nascente da filosofia física julgavam que, ao reconhecer a sobredita verdade, a fé em Deus e na criação do mundo cairia por terra. Os defensores das leis de Copérnico e de Newton, como Voltarie, por exemplo, julgavam que as leis da astronomia destronavam a religião e empregavam como arma, contra ela, as leis da atracção.
Da mesma maneira dir-se-ia que no nosso tempo bastaria reconhecer a lei da necessidade para se aniquilar o conceito da alma, do bem e do mal, bem como todas as instituições governamentais e eclesiásticas assentes nesse conceito.
Como Voltaire, no seu tempo, os defensores não reconhecidas da lei da necessidade empregam hoje a referida lei como uma arma contra a religião. Mas como as leis de Copérnico na astronomia, a lei da necessidade na história, não só não se destrói como se afirma cada vez mais no terreno no qual estão assentes as instituições do Estado e da Igreja.
Como antigamente, em relação ao problema da astronomia, agora, em relação à história, todas as opiniões distintas assentam em reconhecerem ou não a unidade absoluta que serve de medida para os fenómenos visíveis. Na astronomia essa medida era a imobilidade da Terra; na história, a independência do indivíduo, a liberdade.
Assim, como para a astronomia a dificuldade do reconhecimento do movimento da Terra provinha do facto de haver que renunciar à sensação espontânea da imobilidade da Terra e dos planetas, para a história, a dificuldade do reconhecimento da submissão do indivíduo às leis do espaço, do tempo e das causas consiste em renunciar à sensação espontânea da dependência da individualidade. Mas da mesma maneira que, na astronomia, a nova opinião sustentava: “É verdade que não sentimos o movimento da Terra, mas, admitindo a sua imobilidade, depara-se-nos o absurdo; pelo contrário, se reconhecemos que se move, embora não a sentido mover, é a lei que encontrarmos”, na história, a corrente nova diz: “É verdade que não sentimos a nossa dependência; mas, ao admitirmos a nossa liberdade, encontramos o absurdo; pelo contrário, reconhecendo a nossa dependência do mundo exterior, do tempo e das causas é a lei que encontramos”.
No primeiro caso era preciso renunciar à consciência da imobilidade no espaço e reconhecer um movimento que não se sentia; no segundo, também é necessário renunciar à liberdade, que não existe, e reconhecer a dependência, que não sentimos.
<< Home