Alicerçando Poesia # 148 - Teresa Rita Lopes
Tenho Três Cidades Natais
Nasci em Faro
sem querer
Três meses depois do meu pai morrer.
Deve ainda correr-me no sangue o amargo júbilo
de minha mãe quando me pariu.
Talvez por isso minhas raras alegrias têm sempre
o travo ácido das lágrimas.)
Andei nessa cidade como um menino numa casa com demasiados
móveis.
Não sei o que me faltou ou sobrou
mas vivi sempre tem-te não cais
a buscar o equilíbrio no fio reteso de lado a lado
do horizonte.
É verdade que havia ao fundo da minha rua muito ao longe
um certo azul
com quem trocava mensagens ao vento.
Afinal desapareceu: devem-no ter demolido quando construíram
os novos prédios altos que roubaram a paisagem à minha rua.
Da infância recordo especialmente o cheiro morno da seda preta
do vestido da minha Mãe
jovem viúva de luto carregado
e o perfume das açucenas e das violetas do quintal
e o terraço aonde me treinava para ser bailarina ou equilibrista
Nas festas e nas férias havia a horta dos avós de Cacela
o tanque a sombra das larangeiras
o doirso tépido e trémulo dos animais
e sobretudo ah sim! o deslumbramento do mar
ao alcance do olhar.
Um dia mal aprendi a ler foi a primeira menstruação de sílabas
e nunca mais parei de sangrar versos.
Lisboa era a Cidade Prometida
onde nascí outra vez aos dezoito anos
mas só lá fiquei o tempo de uma metamorfose: até aos vinte e cinco.
Foi um grande amor
de enlevados encontros em íngremes miradouros
esconsos cafés e ruas mal calçadas
ainda palpitantes de pregões
sobretudo os dos ardinas ao cair da noite.
Aqui me desentranhei em gratuitas palavras paridas como os filhos
sem porquê
e peças de teatro e revolucionárias acções clandestinas.
Por essas e por outras é que daqui abalei uma manhã para Paris
esse Paris de todos os foragidos de então.
Paris foi a minha terceira cidade natal.
Aí nascí de novo
nua e com frio.
Aí me vi a braços com a minha sombra.
Na cidade em que as mulheres se aplicam a mobilar a vida
com marido e mobílias completas(de quarto, sala, escritório,
living-room) eu renascia numa água-furtada num sexto andar
sem elevador
mas com todos os telhados de Paris e estenderem-me
o dorso para chagalianas viagens.
Quem nunca soube o que é a fome
de espaço ignorou também o gozo de matar
grão a grão
palmo a palmo.)
A minha obélia era recuperada na rua: caixotes
vazios depois dos mercados.
Lembro-me que uma das minhas mansardas
tinha por única janela uma clarabóia no tecto que eu abria
e fechava com um cabo metálico para renovar o ar
até que um dia
nevou
e eu vi flocos de neve a poisar na minha cama: a clarabóia
não tinha vidro.
Em Paris apanhei o susto de me sentir adulta e só
a sós comigo
e com o tempo redondo das mesas dos Cafés
afagada ilha em que
plantava sílabas
e trémulas palmeiras a cuja sombra me acolhia
tardes inteiras
a construir meus corais de palavras para emergir
do abismo.
Cá estou de novo no meu segundo berço. Volto às vezes ao primeiro
e também ao segundo
à procura dos baguinhos de milho que por lá
espalhei
como a menina do conto da infância
para achar o meu regresso
a mim
ao mim de então.
Agora moro instavelmente em casas diversas
e dispersas
minhas tendas de nómada.
Afinal sempre andei de terra
em terra
de casa em casa
de mim em mim
fiel ao mesmo céu
em que vou desenhando uma constelação qualquer
que projecte
e reúne as soltas faúlhas do meu vagabundo fogo.
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