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quarta-feira, agosto 01, 2007

Alicerçando Palavras # 129 - Ilse Losa


A JARRA QUEBRADA


O cinzeiro de louça azul, em cima da secretária, ostenta a sua mocidade. A seu lado a jarra velha, meio partida, sem flores, que fala entre suspiros:

Deitou fora o cinzeiro de vidro e comprou-te a ti. Não tardará que chegue a minha vez e apareça uma jarra nova. És bonito, azul e luzente. Fazes-lhe ver a minha decadência. Se ainda cá estou é unicamente por ele ser um sentimental. Não o admitiria nunca, mas é a verdade. Era bela a senhora que me comprou na loja de porcelanas. Fui embalada numa caixa vermelha com letras douradas. Quando as mãos dele me tiraram dali vi-me num quartinho em cima de uma mesa cheia de livros. Neles o meu dono estudava pela noite dentro. A bela senhora visitava-o amiúde. De todas as vezes trazia-lhe uma rosa que, depois de me ter enchido de água, punha dentro de mim. Os dois abraçavam-se, beijavam-se, falavam, riam. Nesse tempo ele era alegre. Interrompia de quando em quando as leituras, afagava e cheirava as pétalas da rosa, por vezes até me afagava também a mim, não sei se por distracção. Mas um dia discutiram, havia rancor e tempestade nas suas palavras. A bela senhora saiu, bateu com a porta e não tornou a vir. E embora eu ansiasse por uma rosa, nunca mais alguma voltou a saciar a sua sede dentro de mim. Ao cabo de algum tempo o meu dono meteu-me numa mala juntamente com os livros. Vim então parar aqui a esta secretária. Numa infeliz manhã a mulher da limpeza deixou-me cair ao chão. Parti um bom bocado da minha borda e senti-me estremecer. Ele entrou, repreendeu a mulher, e receei que me fosse atirar para o cesto dos papéis, pois pegou em mim e espreitou para debaixo da secretária como quem procura alguma coisa. Depois abanou a cabeça e tornou a colocar-me neste lugar. Desde então não passo de uma mísera jarra partida, e ele já não tem olhos para mim. Mas eu continuo a ter olhos para ele. Conheço-lhe os hábitos, os gestos, os humores. A manhã já vai alta quando aqui chega, porque gosta de dormir até tarde. Um tanto contrafeito remexe no monte de papéis acumulados. Começa a escrever, a fazer contas, a falar ao telefone. Aparecem pessoas, falam de impostos, dívidas, letras e coisas assim. Ele tira apontamentos no bloco, aí atrás de ti. É desconsolador ser-se um bloco de notas. As páginas são arrancadas sem piedade, e quando já não resta nenhuma vai-se parar ao lixo. Uma vida curta dolorosa, acho que deve estar grata por ao menos ser uma jarra. O rapaz no gabinete ao lado está a ser constantemente chamado: copie isto, leve aquilo, despache-se. É pálido, fala mansinho, abaixa a cabeça. Mas mal o meu dono se ausenta, entra aqui, senta-se, estende as pernas, gira o cadeirão, fuma, fala ao telefone. Pois é. Vais ter sorte. Até ele, o rapaz, te vai utilizar. À noite estarás a transbordar de cinzas e todas as manhãs serás lavado. Sempre que o meu dono sacudir, para dentro de ti, a cinza ainda cadente, os seus dedos hão-de roçar-te ao de leve, mas quando se enfronha nos livrinhos amarelos, a que chama policiais, eles ficarão pousados na tua borda, enquanto o cigarro se vai extinguindo entre o indicador e o médio. Oh sim, eu sei. Também a mim voltaram a tocar-me muito ao de leve, assim como as borboletas que, de tempos a tempos, vêm descansar sobre o meu vidrado. Foi quando pela primeira vez veio a frágil senhora ruiva, menos bonita que a outra que me tinha comprado e oferecido. Sentaram-se naquele sofá. Falaram em voz baixa, e ele segurou-lhe as mãos nas suas. Beijava-lhe os olhos e ele olhava-o com tamanha tristeza que me fazia dó. Veio o dia em que chegou desesperada e ele a beijou na boca, no pescoço, nos braços. Disse que a queria só para si. A porta abriu-se. Entrou o rapaz. Assustada, a senhora deu um salto para o lado, e quando ficaram de novo a sós, começou a chorar. Que não podia voltar mais, disse, e ele, de rosto sombrio, conduziu-a à porta. Depois sentou-se e aterrou a cabeça nos braços. Ficou assim não sei se pouco se muito tempo, só sei que o senti como uma eternidade. Por fim ergueu-se, deixou ficar os papéis espalhados e saiu. Não voltei a ver a frágil senhora ruiva. Algo como uma mágoa paira nesta sala. Quando as luzes se apagam e as sombras da noite engolem cores e contornos ouço soluços.

Como hei-de saber de que é que os homens constroem a sua felicidade? Como hei-de saber o que os leva a renunciar aos seus sonhos e desejos? Sou uma jarra. Uma jarra partida com os dias contados. Tu és novo e bonito. É a tua vez de amar e de congeminar.



Ilse Losa, Caminhos sem Destino, Afrontamento



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