Alicerçando Palavras #8 - Miguel Torga
Altar de Cabrões, 9 de Agosto de 1944
Estou a 1536 metros, perto do céu, a ver o Barroso, o Marão, a Peneda, a Serra Amarela e o Lindoso. Estou sentado num marco que separa Portugal de Espanha, mas o sítio chama-se Altar de Cabrões e foi, como se vê, o olimpo de majestades cornudas, a ara de alguns daqueles sagrados deuses lusitanos, de que só restam nomes e cascos. Cada vez sei menos de rezas e de santos. Mas quando pressinto pêgada do velho Endovélicos, tenho logo vontade de me prosternar e benzer. O catolicismo, sem o Cristo querer, encheu este mundo de cruzes e água benta. Ora estes nossos patrícios deuses de chifres eram portadores de uma virilidade mágica, que não nega nem degrada a natureza. Nada de agonias lentas em madeiros de cedro. Água, frutos, sol, e uma divindade fundamentada na verdade feiticeira das coisas.
S. Martinho de Anta, 26 de Dezembro de 1962
Sei de ciência certa que me não chega a língua para dizer claramente o que vou repetir mais uma vez. Mas tento ao menos proclamar, por insistência, a minha profunda certeza de que existe um caminho de ascese laica. Que o profano só o é quando não encontra ressonância humana condigna o que nele ressuma transcendência - palavra que nem de longe nem de perto gostaria que sugerisse qualquer lírico panteísmo contemplativo. Vinculo-me no meu pensamento a uma viva e activa união com a própria essência da matéria.
Há tempos, em Espanha, a atravessar de Léon para Covadonga, pela estrada de Riaño, o desfiladeiro de Sella, descobri alvoraçado que os engenheiros seculares que tornaram transitáveis aqueles abismos eram mestres do êxtase em tudo comparáveis a S. João da Cruz. Que tinham deixado, a vencer os escarpados montes Cantábricos da realidade, escritas na pedra, páginas tão exaltantes como as do poeta que escalou misticamente os montes Carmelos da imaginação.
Relâmpago a iluminar uma antiga certeza brumosa, essa revelação nunca mais deixou de alargar o sentido dentro de mim. E sempre que, à custa de esforço e porfia, consigo, como há pouco na serra, unir, digamos, o meu corpo e o meu sangue ao corpo e ao sangue da natureza, a perfeita comunhão que se realiza e a estranha metamorfose que dái resulta exigem o nome sagrado da transfiguração.
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