Alicerçando Palavras # 18 - Manuel Alegre
A cidade invisível dentro da cidade visível. Procuro nas pedras, procuro nas sombras. Talvez na Torre, a certas horas parece que voga sobre o rio. Talvez em Santa Cruz, a de pedra morena. Costumo apresentar-me ao avô Afonso, às vezes passeio nos claustros, procuro o tempo condensado numa ogiva, num ângulo, numa rosácea, um pequeno fragmento de eternidade, um reflexo de luz, um triângulo, um zero, um símbolo, um sinal, um signo. Por isso gosto do Mosteiro de Santa Clara, os túmulos debaixo de água, as pias baptismais, as folhas a boiar, rosas de outras eras, ecos, restos, rastros. De quando em quando vou à Igreja de Santiago na Praça Velha, estamos em vésperas de batalha, sou Álvaro Vaz de Almada ajoelhado ao lado do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, Désir como divisa, tremulam as bandeiras, Lealdade, Justiça, Vingança, antes tenham vergonha da minha morte do que eu vergonha de viver.
Agora sento-me nos degraus da Sé Velha sobre a pedra desenhada por João de Ruão, oiço a guitarra inconcreta, não há ninguém no largo mas eu oiço a guitarra, a voz, as vozes. Esta serenata é para mim e para ninguém, ré menor, lá menor, fado corrido. Passo depois pela Sé Nova, sento-me nos degraus, meu nome é Eça e digo em voz alta: Esta encantada e fantástica Coimbra. Estou a ver Antero, declama, gesticula, desafia Deus, ainda não chegou à língua nova dos sonetos.
Conheço as esquinas: em certas noites, depois de ler André Breton, viram subitamente para o acaso onde Nadja está à minha espera. Sentado sobre o rio entro na Torre de Duino a ler as Elegias, vou com Rilke pelo parque, ele fala da morte própria que cada um traz dentro de si como um fruto, são arcos e arcos de solidão e então eu vejo: as serenas águas do Mondego, sob as horas que vão.
Manuel Alegre, Rafael, Dom Quixote, 2003
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