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domingo, abril 03, 2005

Alicerçando Poesia # 65 - Lêdo Ivo


A Passagem

Que deixem passar- eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por ser eu diferente ou indesejado
mesmo assim passarei.
Inventarei a porta e o caminho.
E passarei sozinho.




O Tambor

Quem é Deus não é Quem, nem Que, nem Quando.
Vive oculto no bosque, como o esquilo.
Deus não é Isto ou Aquilo. Deus é a lei
da maré que se eleva na restinga.

Entre água e terra avanço, e na laguna
procuro Deus: a sombra persistente
de uma luz apagada de repente
na casa construída sobre a duna.

O vento lava o tempo e o deposita
no rochedo insultado pelas ondaqs
comos e fora um pássaro ferido.

E Deus é Deus, mormaço e areia e voo.
E no mundo vazio o mar ressoa,
volta festiva de um tambor tardio.





O Desconforto

O dia está cheio de palavras.
Elas escorrem como a água das sarjetas ou a saliva da boca
dos demagogos.
Espalham-se no chão como as folhas de um outono excessivo.
Transbordam das lixeiras junto com as latas de coca-cola e
restos de comida.
São piolhos que avançam na selva da tarde.

Ninguém pode viver sem as palavras.
Isto explica o desconforto dos passageiros do metro.
Condenados a um silêncio temporário
eles se entreolham suspeitosamente na plataforma da estação
e estremecem quando as portas do trem se fecham.

Embalados pelos solavancos de um viagem sem paisagem
ouvem os vagões rangerem nos trilhos taciturnos
na escuridão que sustenta o clamor da cidade.
É o que sobra do rumor do mundo. Mas eles querem o instante
em que, devolvidos ao dia loquaz, voltarão a falar.





O Raio

O raio que caiu dividiu o verão.
a cisterna de luz escorria na terra
sob a nuvem purpúrea e o voo do gavião,
e me alcançou em cheio, no meio de mim

como o aroma da flor que se ergue no jardim
para impor a quem passa o domínio do instante.
O sol desmoronado escondeu os seus raios
na doçura da palha espalhada no estábulo.

A serpente agoniza, mudada em coral.
A relva abre caminho no silêncio dos homens
que escalam as montanhas douradas do outono.

Entre os que vão e vêm eu também venho e vou.
Nos tormentos do mundo fui multiplicado
e de tanto existir já não sei mais quem sou.