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quarta-feira, setembro 28, 2005

Alicerçando Palavras # 100 - Ramalho Ortigão


Ramalho Ortigão
in AS FARPAS, Tomo III


ALEXANDRE HERCULANO
Setembro, 1877

O homem que teve na terra o nome glorioso de Alexandre Herculano pertence ao domínio da posteridade desde as 10 horas da noite de ontem, 14 de Setembro de 1877.
Os que houverem de julgar na história essa poderosa personalidade terão de considerar que dois cidadãos, inteiramente diversos, existiram na terra, sucedendo-se um ao outro no indivíduo daquele nome.
Um desses cidadãos é o historiador da nacionalidade portuguesa e da Inquisição em Portugal, o romancista do Monasticon, o poeta da Harpa do Crente, o profundo pensador, o sábio arqueólogo, o paciente erudito, o crítico penetrante, o valoroso trabalhador, o grande artista, o inimitável mestre.
O segundo dos cidadãos que passaram no mundo sob o nome de Alexandre Herculano é simplesmente o ilustre solitário de Vale de Lobos.
Estranha evolução de um mesmo ser! Aquele que na primeira metade da existência representa todas as vivas energias por meio das quais o espírito pode actuar no impulso de uma civilização e no aperfeiçoamento de uma sociedade, não é no segundo período da sua vida senão o objecto passivo e inerte de uma designação ascética, imposta pela banalidade retórica dos noticiários – o solitário ilustre!
Como filósofo, como investigador como crítico, como poeta, Alexandre Herculano cria em Portugal os estudos históricos; funda a mais importante colecção dos modernos trabalhos literários – o Panorama; enobrece a língua com o seu estilo nítido e cortante em que a frase tem o lampejo e o golpe dos passes de espada; honra o ofício das letras com o porte rígido, austero e elegante de sua figura literária, em que se denuncia o contorno do guerrilheiro portuense envolto no capote branco dos românticos de 1830, que ele sabia traçar com o garbo marcial de Alfredo de Vigny; cria escola; agrupa em volta de si uma mocidade que o admira e que o idolatra; expede o grito de guerra, que põe em armas a nova geração que vem despontando atrás dele; chama à peleja o partido ultramontano e desfecha ele mesmo os primeiros tiros que rompem as hostilidades da liberdade com o clericalismo; lança finalmente as bases do moderno movimento intelectual, sugere novas ideias, novas aspirações, novos interesses morais, impulsionando vigorosamente a sua época por meio das fecundas agitações do espírito que aceleram nas sociedades vivas a elaboração do progresso.
Como ilustre solitário de Vale de Lobos, Herculano rescinde a sacrossanta escritura da responsabilidade universal, por via da qual o génio do homem se obriga tacitamente com a natureza a servi-la, como sendo ele mesmo a mais poderosa das forças de que dispõe o grande universo; desdiz com o seu repentino silêncio todas as afirmações da sua grande voz; abjura da luz difundida pelas suas palavras à sombra projectada pelas suas oliveiras; nega o movimento que criou pela inacção em que caiu; desdá finalmente todos os laços de solida riedade que o prendiam aos seus compatriotas e aos seus se melhantes, que vinculavam o seu destino intelectual aos destinos da pátria e da humanidade.
O dia do nosso grande luto nacional não é aquele em que expirou o solitário ilustre, mas sim aquele em que deixou de existir para o vertiginoso bulício da vida pública o ardente escritor, que no seio da multidão flutuante, estrepitosa, leviana, indiferente, pérfida, traiçoeira, ingrata, lançava às praças e às ruas públicas, lamacentas e sórdidas, as suas ideias de cada dia, nobres, castas, desinteressadas, aladas pelo alfabeto tipográfico, adejando sobre as imundícies e sobre as dejecções da cidade, como douradas abelhas impolutas, que vão de alma em alma sacudindo das asas luminosas em pólen diamantino a divina verdade.
A isolação de Herculano no remanso estéril do diletantismo bucólico comprometeu o destino mental de uma geração inteira. Pelo intenso poder das suas faculdades reflexivas, pela eminência do seu talento, pela autoridade da sua palavra, pela popularidade do seu nome, pela reputação nunca discutida da sua honestidade, ele era o homem naturalmente indicado para assumir o pontificado intelectual do seu tempo. A ausência dessa autoridade do espírito sobre o espírito foi uma catástrofe para a geração moderna.
Tudo se ressentiu na sociedade portuguesa, com o desaparecimento desse alto poder moderador, destinado a ser o nú cleo do seu governo moral.
A tribuna parlamentar nunca mais tornou a subir um ho mem cuja voz firme, sonora e vibrante levasse até aos quatro cantos do país a expressão viril das grandes convicções inflexíveis, dos altos e potentes entusiasmos ou dos profundos e implacáveis desdéns. Essa pobre tribuna deserta degradou-se sucessivamente até não ser hoje mais do que uma prateleira mal engonçada com algum lixo e o respectivo copo de água.
A imprensa decaiu como decaiu a tribuna. Assaltada pelas mediocridades ambiciosas e pelas incompetências audazes, a imprensa tornou-se um tablado de saltimbancos de feira, convidando o público a 10 réis por cabeça, para assistir, entre assobios e arremessos de cenouras e de batatas podres, à representação da desbocada comédia, declamada em gíria da matula por personagens sarapintadas a vermelhão e a ocre, que mostram o punho arregaçado e sapateiam as tábuas, como em sarabanda de negros e patifes, com os seus pés miseráveis.
A política converteu-se em uma vasta associação de intriga, em que os sócios combinam dividir-se em diversos grupos, cuja missão é impelirem-se e repelirem-se sucessivamente uns aos outros, até que a cada um deles chegue o mais frequentemente que for possível a vez de entrar e sair do governo. Nos pequenos períodos que decorrem entre a chegada e a partida de cada ministério o grupo respectivo renova-se, depondo alguns dos seus membros nos cargos públicos que vagaram e recrutando novos adeptos candidatos aos lugares que vierem a vagar. É este o trabalho de assimilação e desassimilação dos partidos, que constitui a vida orgânica do que se chama a política portuguesa.
A arte desnacionaliza-se e afasta-se cada vez mais do fio tradicional que a devia prender estreitamente à grande alma popular.
A opinião pública, marasmada pela indiferença, desabitua-se de pensar e perde o justo critério por que se julgam os homens e os factos.
Se um pensador da alta competência e da grande autoridade de Alexandre Herculano tivesse persistido durante os últimos vinte anos à frente do movimento intelectual do seu tempo, essa influência teria modificado importantemente o nosso estado social.
Na política, ninguém como ele, com as suas opiniões extremas e radicais, poderia originar a criação dos dois grandes e fortes partidos – o partido conservador e o partido revolucionário – de cuja controvérsia depende essencialmente não só o progresso político da sociedade portuguesa, mas a própria conservação do seu regime constitucional.
Na imprensa, ninguém como ele poderia elevar a autoridade da instituição com a sua palavra tão cintilante, tão denodada, tão própria para o debate, e com a sua experiência tão esclarecida pela convivência e pela cultura da história.
Na opinião e no espírito público ninguém teria uma acção tão segura e tão decisiva, porque ninguém como ele gozou em Portugal de um tão inteiro prestígio e de uma tão completa e absoluta autoridade.
Na arte, ninguém ainda mais próprio para levar a criação estética à fonte nativa da inspiração, à tradição histórica, à raiz da paixão e do sentimento nacional.
Exercer essa alta direcção dos espíritos é nas sociedades modernas a missão dos grandes homens. Dos eminentes escritores europeus deste século Herculano foi o único que espontaneamente abandonou na força da inteligência e da vida o posto de honra a que chegara pelo esforço do seu trabalho e pela posse dos mais felizes dons com que a natureza o dotara.
Guizot, Michelet, Buckle, Proudhon, Stuart Mill, todos os modernos, todos os que vieram depois de definido pela Revolução o dogma do dever social, viveram combatendo até à última hora e morreram com a pena na mão.
Há poucos dias ainda a França viu cair Thiers na estacada em pleno combate. Era um velho pequenino, valetudinário, quase raquítico. Desde muito que ele era suficientemente rico para gozar a tranquilidade egoísta, imperturbável, do mais poderoso príncipe. A sua longa vida fora uma série nunca interrompida de combates, de derrotas, de triunfos, das mais violentas comoções que podem oprimir e dilacerar uma alma. Há dez anos que poucos teriam como ele o direito de solicitar um pouco de tranquilidade e um pouco de sombra. Ele todavia permanece no ponto mais temeroso da peleja, e é essa pertinácia de um só homem, tão débil e tão caduco que qualquer mulher poderia pô-lo ao colo e adormecê-lo como um baby, que a França deve a sua reconstituição política e social, e a democracia a afirmação mais poderosa e mais enérgica de uma república no coração da Europa.
Na Inglaterra, não já um homem mas uma simples mulher que teve um papel decisivo no movimento das ideias moder nas, Miss Martineau, ferida por uma lesão do coração, desenganada pela medicina de que não pode ter mais de um ano de vida, concentra durante esse ano todas as suas faculdades na conclusão da sua última obra, conta a uma por uma em benefício do seu semelhante as suas derradeiras pulsações, e sob uma condenação mais peremptória e mais tremenda que a de Condorcet, arranca da sua invencível vontade a energia precisa para escrever com a lucidez mais profunda, com a firmeza mais viril, com a coragem mais heróica, o admirável livro em que depõe com a última palavra o último suspiro.
Um simples poeta, um romancista, um talento de especialidade, tem o direito de fazer um livro e de se calar para todo o sempre; mas o cidadão em quem concorrem as multíplices aptidões cerebrais que constituem os espíritos superiores, as capacidades dirigentes, não tem esse direito.
A benevolência devida aos vivos pode levar-nos a respeitar nos actos de cada homem um produto indiscutível da sua liberdade; a verdade porém devida aos mortos, a incorruptível verdade, tem diante dos túmulos o dever de considerar, em nome da sociedade, todas as condições que encaminharam ou desencaminharam uma existência nessa linha ideal para onde convergem as mais altas aspirações da humanidade.
E é só assim que as gerações aprendem o que têm de agradecer e o que têm de perdoar aos obreiros do passado, tirando desse juízo austero sobre a missão dos que morreram, a regra moral a que têm de submeter-se aqueles que estão vivos .
A elaboração psicológica das causas que levaram o espírito de Herculano a quebrar as suas relações mentais com a sociedade, é um importante estudo a que se acham obrigados aqueles que viveram na intimidade e na confidência do grande escritor. A sociedade precisa de saber que grau de responsabilidade lhe cabe no emudecimento dessa voz. Porque a isolação de Herculano não é um simples episódio-biográfico, é um facto social, é um dos mais tristes fenómenos da decadência portuguesa.
O exemplo do solitário de Vale de Lobos será profundamente nocivo, se não for cabalmente explicado como uma fatalidade sociológica.
Todos aqueles que trabalham com dedicação e com honra, que se consideram responsáveis diante dos seus semelhantes pela conclusão do trabalho que a si mesmos se impuseram, que se dedicam à sua missão, que vêem nela uma parte integrante da grande obra colectiva da humanidade, todos aqueles que têm na vida um fito superior e desinteressado, estão sujeitos em cada dia, em cada hora, em cada instante, à grande luta da consciência com as sugestões do egoísmo, com a ingratidão dos homens, com a calúnia, com a traição com o desdém. É perigoso para os que têm ainda, no meio da dissolução geral dos caracteres, esse vivo sentimento da solidariedade, essa corajosa dedicação do martírio, essa persistência no lento suicídio que é a vida de todos os que pensam e de todos os que lutam, o ver de repente soçobrar e afundar-se na fria impassibilidade e na tenebrosa indiferença o alto luminar destinado a indicar a uma geração inteira o árduo e penoso rumo do dever.
Lemos em um jornal que a imprensa de Lisboa, reunida em assembleia para o fim de pagar à memória de Alexandre Herculano o tributo da sua admiração, resolvera abrir uma subscrição destinada a elevar um monumento ao insigne es critor. Parece, segundo o mesmo boato, que não está ainda resolvido de que natureza será o monumento em projecto.
Se tivéssemos a imerecida honra de sermos considerados pela imprensa como um dos seus membros, eis o que proporíamos:
A obra monumental, posto que ainda incompleta do finado escritor, a sua História de Portugal, é possível que houvesse já sido lida, mas, conquanto escrita há muitos anos, não foi por enquanto estudada.
Em todo o longo trabalho de investigação, de crítica, dc análise, de dedução, que constitui a matéria desses quatro volumes, o público português não viu senão dois factos extremamente subalternos na obra do filósofo e na obra do artista: – a negação do milagre de Ourique e das cortes de Lamego.
O historiador da nossa nacionalidade não foi olhado senão debaixo de um aspecto – o aspecto das nossas superstições.
As origens do direito, da arte, da propriedade, da religião, da família, da pátria interessam-nos de um modo tão medíocre que nunca nos sugeriram uma ideia clara sobre qualquer desses fenómenos.
De tão múltiplos problemas suscitados ou resolvidos pelo historiador da nossa vida civil apenas um nos comoveu até às mais íntimas profundidades do nosso organismo social: Se Jesus Cristo tinha ou não tinha vindo cavaquear com D. Afonso Henriques na véspera de uma batalha, e se a derrota dos mouros fora ou não o resultado de uma operação estratégica combinada de comum acordo entre os dois poderosos inimigos do Califado de Córdova, o filho do conde D. Henrique e o filho de Deus.
Todas as demais questões debatidas nos quatro volumes da História de Portugal passaram inteiramente despercebidas ao jornalismo português, o qual não teve ainda, até hoje, ocasião de publicar um artigo cientificamente fundamentado acerca do papel do nosso primeiro historiador na direcção dos estudos históricos e na compreensão das leis fundamen tais da nossa evolução social.
A homenagem que a imprensa deve prestar a Alexandre Herculano é a publicação desse estudo, porque o primeiro dever dos jornalistas perante um grande escritor é mostrar que o leram. Com relação a Herculano essa dívida está por saldar, e a imprensa tem que desempenhar-se dela com tanta mais prontidão, quanto é certo que o seu longo silêncio podia ter sido uma das causas que levaram o iniciador dos trabalhos históricos portugueses a talhar para si mesmo a triste mortalha em que desceu envolto para o túmulo – a mortalha do desprezo. Não conseguiu merecer-lhe mais o espírito dos contemporâneos.