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sexta-feira, setembro 23, 2005

Alicerçando Palavras # 99 - Inês Pedrosa


Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus – mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira. Quando o pior acontecia, aquele sorriso descia às minhas trevas com um soluço de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da infância. Eu sentava-me nele e subia, balouçando, até à luz. O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos.

Tu dizias que era ao contrário: que Deus nasce da ignorância própria dos sofrimentos prematuros. Mas tu, meu aluno dilecto, cedo te deixaste povoar pelo excesso do saber. Deus não sabia nada do Universos quando o criou. Imagino que se sentiria só. Imagino que num momento impreciso essa solidão se terá tornado maior do que Ele próprio, estourando numa gigantesca flor de luz. E imagino-O, depois, tentando dar um sentido particular a cada uma das pétalas dessa luz dispersa. Agora que saí do corpo que fui – para me tornar pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de mim – imagino-o melhor ainda, ébrio de luz, lúcido, encadeado por um Lúcifer oculto e criador incrustado no seu próprio ser, em estado de paixão com a história desencadeada pela sua omnipotente solidão. E balouço no Seu sorriso outra vez, a vez definitiva porque o meu corpo está lá em baixo, num caixão, contemplado e lembrado e chorado pela última vez.

Não me levantarei da cama amanhã de pois de Lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao baloiço, que o empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no corpo do único homem que me abriu no corpo a passagem secreta para a morte. Não voltarei à desilusão do renascimento. Sobretudo não voltarei a desiludir-te a ti, o descrente que me ensinou a crer melhor, o meu pequeno e velho Deus de algibeira, o meu amigo.

Despojada de corpo é-me mais fácil transformar-me no próprio balouço, na luz dançante de que ele é feito. Num murmúrio de vento peço-Lhe que não me empurre tão depressa para esse lugar iluminado que é a Sua Carne, peço-Lhe que me deixe matar saudades desse mundo que deixei tão de repente. Matar saudades de ti. Ou matar-te, como fazem as crianças, para recomeçar uma outra história, no balouço quotidano do teu sorriso.



Inês Pedrosa, Fazes-me Falta, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002