Alicerçando Palavras # 90 - do filme Morte em Veneza
Do filme Morte em Veneza de Luchino Visconti baseado na novela de Thomas Mann o diálogo entre o compositor Gustav Aschenbach e o seu amigo.
- Belo. Queres dizer, a tua concepção espiritual de belo.
- Mas negas que o artista possa criar a partir da imaginação?
- Sim, Gustav, isso é exactamento o que eu nego.
- Então, no teu entender, o nosso trabalho enquanto artistas é...
- Trabalho, exactamente! Acreditas mesmo que o belo provém do trabalho?
- Sim, acredito.
- Eis como o belo nasce.Assim. Espontaneamente. Totalmente indiferente ao nosso trabalho. Preexiste à nossa presunção de artistas. O teu grande erro, meu caro amigo, é considerar a vida, a realidade como uma limitação.
- Mas não é assim mesmo? A realidade apenas nos confunde e avilta. Sabes, por vezes, penso que os artistas são como caçadores que atiram no escuro. Desconhecem o alvo e não sabem se o atingiram. Mas não podemos esperar que a vida nos mostre o que a arte é. A criação de beleza e pureza é um acto espiritual.
- Não, Gustav. Não! A beleza pertence ao mundo dos sentidos. Apenas aos sentidos.
- Não podemos alcançar o espírito. Não podemos alçanar o espírito através dos sentidos. É impossível. É apenas através do completo domínio dos sentidos que podemos alguma vez alcançar sabedoria, verdade e dignidade humana.
- Sabedoria? Dignidade humana? De que nos servem? O génio é uma dádiva divina. Não, é uma perturbação divina. Uma chama súbita, pecaminosa e mórbida de dons naturais.
- Rejeito as virtudes demoníacas da arte.
- E estás errado! O mal é imprescindível. É o alimento do génio.
- Sabes, a arte é a mais elevada fonte de educação e o artista tem de ser exemplar. Deve ser um modelo de equilíbrio e força. Não pode ser ambíguo.
- Mas a arte é ambígua. E a música é a mais ambígua de todas as artes. É a ambiguidade tornada ciência. Espera! Ouve este acorde... ou este. Podemos interpretá-los como quisermos. Temos perante nós toda uma sequência de combinações matemáticas imprevistas e inesgotáveis! Um paraíso de ambiguidades em que tu, mais do que ninguém, fazes um regabofe, Não ouves? Não reconheces?
- Pára!
- É tua! A música é toda tua!
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