Alicerçando Palavras # 19 - Arturo Pérez-Reverte
E, no entanto, o “Se...” condicional na porta do oráculo de Delfos, que Coy conhecia por Melville, mas que este fora, por sua vez, buscar a outros livros que ele não tinha lido, continuava a vibrar no ar tal como o temporal tocava a harpa na enxárcia, mesmo depois de o mar se cerrar sobre o albatroz preso pelo martelo e pela bandeira, e de o Raquel resgatar outro órfão. De súbito, para sua íntima surpresa, Coy descobria que as etapas livrescas ou vitais, independentemente do modo como são chamadas, nunca se fecham de uma forma perfeita. E que, embora os heróis tenham perdido a inocência e estejam demasiado exaustos para acreditar em navios fantasmas e em tesouros submersos, o mar continua inalterável, cheio da sua própria memória que, ela sim, acredita em si própria. Ao mar é indiferente que os homens percam a fé na aventura, na caçada, no barco afundado, no tesouro. Os enigmas e as histórias que contém possuem vida autónoma, bastam-se sozinhos e continuarão ali mesmo depois de a vida se ter extinguido para sempre. Por isso, até ao último instante, haverá sempre homens e mulheres interrogando o cachalote agonizante, enquanto este volta a cara na direcção do Sol e expira.
Arturo Pérez-Reverte, O Cemitério dos Barcos sem Nome, Edições Asa
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