Alicerçando Palavras # 79 - Jorge Luís Borges
[...]Entoei, lento, a famosa linha:
L'hydre-univers tordant son corps écaillé d'astres.
Senti-lhe um espanto quase amedrontado. Repetiu-a em voz baixa, saboreando cada palavra resplandecente.
- É verdade - balbuciou. - Nunca poderei escrever uma linha como essa.
Hugo tinha-nos unido.
Recordo agora que ele repetira com fervor aquele breve poema em que Walt Whitman relembra uma noite compartilhada ao pé do mar, noite em que fora realmente feliz.
- Se Whitman a cantou é porque a desejava e não aconteceu - observei. - O poema ganha se adivinharmos que é manifestação de um anseio e não a história de um eco.
Ficou a olhar para mim.
- O senhor não o conhece - exclamou. - Whitman é incapaz de mentir.
Não passa em vão, meio século. Por detrás desta conversa entre pessoas de leituras variadas e gostos diferentes, compreendi que não podíamos entender-nos. Éramos demasiado diferentes e demasiado parecidos. Não podiamos enganar-nos, o que faz difícil o diálogo. Cada um de nós era o arremedo caricato do outro. De tão anormal, a situação não podia durar muito mais tempo. Aconselhar ou discutir era inútil porque o inevitável destino dele era ser o que eu sou.[...]
extracto do conto O Outro
Jorge Luís Borges, O Livro de Areia, Editorial Estampa, Lisboa, 1994
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