Da Segunda Parte- OS DESLIMITES DA PALAVRA
DIA UM
1.1
Ontem choveu no futuro.
Águas molharam meus pejos
Meus apetrechos de dormir
Meu vasilhame de comer.
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha/.
Minha canoa é leve como um selo.
Estas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo a fronteira do céu.
(Um urubu fez precisão em mim?)
Estou anivelado com a copa das árvores.
Pacus comem frutas de carandá nos cachos.
SEGUNDO DIA
2.2
Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho.
A luz das horas me desproporciona.
Sou qualquer coisa judiada de ventos.
Meu fanal é um poente com andorinhas.
Desnvolvo meu ser até encostar na pedra.
Repousa uma garoa sobre a noite.
Aceito no meu fado o escurecer.
No fim da treva uma coruja entrava.
2.5
Ando muito completo de vazios
Meu órgão de morrer me predomina.
estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destinio.
essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas
TERCEIRO DIA
3.1
Passa um galho de pau movido a borboletas:
Com elas celebro meu órgão de ver.
Inclino a fala para uma oração.
Tem um cheiro de malva esta manhã.
Hão de nascer tomilhos em meus sinos.
(Existe um tom de mim no anteceder?)
Não tenho mecanismos para santo.
palavra que eu uso me inclui nela.
este horizonte usa um tom de paz.
Aqui a aranha não denigre o orvalho.
3.6
Nuvens me cruzam de arribação.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.
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....................................................
Diviso ao longe um ombro de barranco.
E encolhidos na areia uns jaburus.
Chego mais perto e estremeço de espírito.
Enxergo a Aldeia dos Guanás.
Imbico numa lata enferrujada.
Um sabiá me aleluia.
Da Terceira Parte - MUNDO PEQUENO
V
Esses lagartos curimpãpãs têm índole tropical.
Tornam-se no mês de agosto amortecidos e diotas
Ao ponto que se deixam passar por cima como
pedras.
Ao ponto que se deixam atravessar por caminhões.
Aparecem de sempre esses lagartos encostados em
muros decadentes -
Onde se criam devassos.
Bem assim por exemplo:
Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou
banho em cima.
Lagarto curimpapã assistiu o banho com luxúria no
olho encapado.
Depois se escondeu debaixo de um tronco.
(Tem um tipo de árvores que dão pros lagartos.)
Alguns atravessam invernos que os pássaros morrem.
Borboletas translúcidas quedam estancadas no
tronco das árvores-
Se enxergam por perto os curimpãpãs.
Mas todos sabemos que esses lagartos curimpãpãs
são pouco favorecidos de horizontes.
Enxergam tão pequeno que às vezes pensam que a
gente é árvore e nem se mexem.
Nos barrancos há riscos de suas manguaras.
E se estão em aflição de espírito - combustam!
(Essas notícias foram colhidas por volta de 1944,
entre os índios chiquitanos, na Bolívia.)
Águas estavam iniciando rãs.
VI
De primeiro as coisas só davam aspecto
Não davam idéias.
A língua era incorporante.
Mulheres não tinham caminho de criança sair
Era só concha.*
depois é que fizeram o vaso da mulher com uma
abertura de cinco centímetros mais ou menos.
(E conforme o uso aumentava.)
Ao vaso da mulher passou-se mais tarde a chamar
com lítera elegância de urna consolata.
Esse nome não tinha nenhuma ciência brivante
Só que se pôs a provocar incêndio a dois.
Vindo ao vulgar mais tarde àquele vaso se deu o
nome de cona
Que, afinal das contas, não passava de concha mesmo.
* Era só concha: está nas Lendas em Nheengatu e Português, na
Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v.154.
IX
Tudo o que se há de dizer aqui sobre capivaras, nem
as mentiras podem ser comprovadas. Se esfregam nas
árvores de tarde antes do amor. Se amam sem ocupar
beijos. Excitadas se femeiam por baixo dos balseiros.
E ali se aleluiam. O cisco das raízes aquáticas e a
bosta dos passarinhos se acumulam no lombo das
capivaras. Dali se desprende ao meio-dia forte carlor
de ordumes larvais. No lombo se criam mosquitos
monarcas, daquele de exposição, que furam até
vidros e abaixam pratos de balança. É vezo de
dizer-se então que capivara é um bicho insetoso.
Porquanto favorecem a estima dos pássaros,
sobretudo dos bentevis que lhes almoçam larvas ao
lombo. Coisa que todo mundo gosta, tirante as
capivaras, é de flor. Pelo que já não entendo, existem
razões particulares ou individuais que expliquem tal
desgosto ds capivaras por flor? Todas guardam água
no olho.
XII
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de
trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
fios de teias de aranha. A coisa fica bem
esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)
LIVRO DAS IGNORANCIAS, Ed..Record, Rio de Janeiro, Brasil, 1993
Etiquetas: Poesia