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quinta-feira, dezembro 30, 2004

Alicerçando Palavras # 28 - Fernando Pessoa



O Objectivo da Arte não é ser Moral nem Imoral
A arte não tem, para o artista, fim social. Tem, sim, um destino social, mas o artista nunca sabe qual ele é, porque a Natureza o oculta no labirinto dos seus designios. Eu explico melhor. O artista deve escrever, pintar, esculpir, sem olhar a outra cousa que ao que escreve, pinta, ou esculpe. Deve escrever sem olhar para fora de si. Por isso a arte, não deve ser, propositadamente, moral nem imoral. É tão vergonhoso fazer arte moral como fazer arte imoral. Ambas as [cousas] implicam que o artista desceu a preocupar-se com a gente de lá fora. Tão inferior é, neste ponto, um sermonário católico como um triste Wilde ou d'Annunzio, sempre com a preocupação de irritar a plateia. Irritar é um modo de agradar. Todas as criaturas que gostam de mulheres sabem isso, e eu também sei.


Fernando Pessoa, in 'Sobre «Orpheu», Sensacionismo e Paùlismo'


quarta-feira, dezembro 29, 2004

Alicerçando Imagens # 24 - Gustav Vigeland



O Jardim Vigeland em Oslo - o lugar das crianças

terça-feira, dezembro 28, 2004

Alicerçando Poesia # 38 - Emanuel de Sousa


xxxxxxxxEm cada dia há duas noites: uma para o sol outra para a lua. uma para o fogo outra para as cinzas. uma para a luz outra
para as sombras.

xxxxxxxxxxxxnão questiones qual delas é a tua. limita-te a olhar, sem procura. sem saberes. sem nada seres. como a rosa que de si não é curiosa.

xxxxxxxxpasso as noites. as horas afastam-se. atravesso o escuro. os silên-
cios soltam-se. procuro a saída. a voz. na desolação das sombras.
no espreitar dos dias.

Ariadne, Quetzal Editores, 1999





eu disse: tenho sede
tu disseste: nada sabes do destino das águas
eu disse: tenho medo
tu disseste: das águas nascem sedas
eu disse: por esse rio não vou
tu disseste: desliza na memória quente da seiva que nos agita
eu disse: é fundo o sentido da corrente
tu disseste: há tábuas onde o sol flutua
eu disse: nos tojos o orvalho escorre
tu disseste: e nele a vertigem da luz transitiva
xxxxxxxxxxa miragem dos paraísos vegetais
xxxxxxxxxxa razão da raíz
xxxxxxxxxxa lucidez do sol magnífico no
xxxxxxxxxxincontrolável desejo do olhar
eu disse: eu quero a água; eu quero a seda; eu vou no rio; eu sou a tábua
e tu disseste: eu sou o destino; eu sou a viagem; eu sou o sol; eu sou a mágoa

Eurídice, Quetzal Editores, 1989


segunda-feira, dezembro 27, 2004

Alicerçando Palavras # 28 - Lya Luft


Por que escrevo?

"Sempre que perguntam por que escrevo, minha resposta tem a ver com 'sobre o que escrevo'. De que falo, ao fazer minha literatura? O rótulo mais comum é "ela escreve sobre mulheres". Essa é uma constatação precária, pois não são mulheres meus personagens exclusivos, mas homens e crianças, casas com sótãos e porões, dramas ou banalidades. Falo também do estranho atrás de portas, mortos que vagam e vivos que amam ou esperam. Escrevo sobre o que me assombra – como na infância.

Escrever para mim é indagar: continuo a menina perguntadeira que perturbava os almoços familiares querendo saber tudo, qualquer coisa, o tempo todo. Portanto, escrevo para obter respostas que – eu sei – não existem. E sobre possibilidades de ser mais feliz – essa, eu sei também, depende um pouco de cada um de nós, de nossa honradez interior, nossa fé no ser humano, nosso compromisso com a dignidade.

Escrevo para provocar, e para questionar também: quem somos e como vivemos – como convivemos, sobretudo?

Falo do estranho que somos: nobres e vulgares, sonhadores e consumidores, soprados de esperança e corroídos de terror, generosos e tantas vezes mesquinhos.

Sei, de minhas criaturas inventadas, muito mais do que expresso em linhas ou silêncios – que são sempre o mais importante de um texto meu: sei se aquela mulher usa algodão ou sedas, se a escada range quando ela caminha – ainda que nenhum desses detalhes apareça no romance.

Conheço a solidão daquele homem, sei se cultiva medos secretos, se pensa na morte, se desejaria ser mais amado.
E quando começo a "ser" essa pessoa, quando o clima da obra me envolve e me arrasta, chegou o momento em que o livro quer ser escrito. Estarei aberta a ele, deixarei que essas criaturas subam das profundezas do caldeirão de bruxas que é experiência e alucinação, memória e invenção, perplexidade e amadurecimento, e tentarei dar-lhes voz na minha voz. 'Como uma espécie de possessão... você sente como se estivesse incorporando alguma entidade?' – me perguntou um dia um universitário.

Se fosse assim, não haveria trabalho nem arte, apenas um abrir e fechar de portas. São meus e não são, esses vultos com seus destinos e desatinos – e eu os questiono o tempo inteiro. Faço e desfaço, armo e desarmo, construo e vejo que se esboroam tantos projetos. Qualquer de meus escritos poderia ter um subtítulo: 'O livro das indagações' – porque importa realmente aquilo que não sei... que se insinua, que espia, bota para fora a mãozinha e me chama, sinal sinistro ou doce tentação.

De repente, aí estão meus personagens: um olho, o fino contorno de um perfil, um gesto, um riso ou uma tragédia, um êxtase, um silêncio e uma solidão.

Sobretudo, escrevo sobre essa busca de sentido que imprime em nós sua marca desde o primeiro instante: esse tatear como num fundo d'água onde nossos dedos deparam com um rosto, sim, este me poderá entender, sim, por aqui vai o meu destino... Mas as dissonâncias se sobrepõem, e no fundo de cada um de nós existe o medo, a inquietação, a consciência da morte, do talvez-nada. De outro lado, muitas vezes prevalece a solidariedade, o entendimento, a generosidade interior: podemos não ser amargos, podemos não ficar isolados, podemos nos humanizar mais. E disso também falamos, nós os escritores.

Escrevo porque tenho necessidade e prazer em elaborar com palavras esse traçado de tantas vidas, antas criaturas, tantos destinos e aventuras que povoam minha imaginação, e que acabarão – ou não – vivendo nos meus textos. Quando escrevo inicia-se essa escavação, essa arqueologia, começa a desenrolar-se o fio que nasce em mim. Aracne produz novelos para que eu os teça.

Escrevo para seduzir leitores que sejam meus cúmplices na inquietação fundamental: 'Tive um pouco de medo daquele seu livro, porque ele me fez pensar demais', é um comentário bastante comum. A mim, parece-me que além da fruição estética, a arte existe para nos fazer pensar. Não se pode esquecer também que escrevo propondo uma releitura atenta dos valores familiares e sociais de meu tempo: cada um de meus romances pode e deve ser lido como uma denúncia da hipocrisia, da superficialidade, da indiferença, da negligência e da mentira nas relações humanas, amorosas, familiares e sociais.

Não é apenas o imponderável e misterioso da existência que me interessa, mas o grande desencontro nas relações, o frio silêncio promovido no diálogo humano e pessoal pelo preconceito e pela apatia, pelo desinteresse e pelo isolamento dos indivíduos, sobretudo no núcleo familiar.

O escritor é um ser particularmente antenado, não apenas para o fundo da chamada alma humana, mas, conscientemente, para as realidades a seu redor. E ainda que eu não faça literatura explicitamente engajada, empenho nela um ardente engajamento na aventura existencial humana, e na sua qualidade.

Essa chama, essa antena sutil se multiplica e tateia o mundo e o próprio interior, do qual emana uma luz que resiste e transborda. Os artistas são recipientes de carvões em brasa e têm visões que tentam esconjurar com traços, gestos, música ou palavras... e nesse trânsito entre realidade e sonho, cujas fronteiras para eles pouco importam, vão e vêm entre territórios que igualmente os convocam. Então para mim escrever é transitar – e tentar, quem sabe, fixar relances disso que, com os olhos e com a sensibilidade, todos nós vislumbramos.

O escritor fala pelos outros, e nessa medida sua própria existência individual é desimportante: o que vale e o que brilha são seus personagens, seus questionamentos, suas inquietações, suas palavras, sua busca e a sua eterna indagação."


Lya Luft, Porto Alegre, 1999



sexta-feira, dezembro 24, 2004

Especial de Natal



Boas Festas


Em especial para os meus amigos do Letras no Teclado



PAZ

Paz de lareira acesa.
A vida sem horário
E os dias aquecidos.
Dias acontecidos
Num outro calendário.

Hibernação da alma
No corpo aconchegado.
Nenhum grito dorido
A bater ao ferrolho adormecido
De sossego acordado.

Tréguas em toda a frente
De batalha.
O Coração contente
Porque ninguém lhe ralha
De pulsar calmamente.


Miguel Torga, S. Martinho de Anta, 24 de Dezº de 1963


quinta-feira, dezembro 23, 2004

Alicerçando Imagens # 23- Julian Beever


Julian Beever - street painting



Fonte: aqui

terça-feira, dezembro 21, 2004

Alicerçando Poesia # 37 - Ana Luísa Amaral


O Excesso Mais Perfeito


Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.


Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.


Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.


Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.


Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.


Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada.




Às Vezes o Paraíso, Quetzal, Lisboa, 1998


segunda-feira, dezembro 20, 2004

Alicerçando Imagens # 22 - Gerhard Richter



Mediation, 1986, óleo sobre tela, 320x400cm - Museu das Belas-Artes, Montreal



What I'm attempting in each picture is nothing other than this.. to bring together in a living and viable way, the most different and the most contradictory elements in the greatest possible freedom.

Richter

domingo, dezembro 19, 2004

Alicerçando Palavras # 27 - Almada Negreiros


Mãe Vem Ouvir

Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei! Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero Ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!


A INVENÇÃO DO DIA CLARO, LIRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 95



A Flor

"Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux".


Henri Matisse




Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.

Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!

As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!



A INVENÇÃO DO DIA CLARO, LIRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 95



sábado, dezembro 18, 2004

Alicerçando Poesia # 36 - Antero de Quental


O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!


Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que de súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!


Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante maus ais!


Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Alicerçando Imagens # 21 - Orozco, José Clemente - México - 1883-949



Zapata, óleo sobre tela, 178,4x122,6cm

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Alicerçando Palavras # 26 - Hannah Arendt


O Valor da Obra de Arte

A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma forma que a «propensão para a troca e o comércio» é a fonte dos objectos de uso. Tratam-se de capacidades do homem, e não de meros atributos do animal humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes constituem o seu conteúdo.
Estes atributos humanos são tão alheios ao mundo que o homem cria como seu lugar na terra, como os atributos correspondentes de outras espécies animais; se tivessem de constituir um ambiente fabricado pelo homem para o animal humano, esse ambiente seria um não mundo, resultado de emanação e não de criação. A capacidade de pensar relaciona-se com o sentimento, transformando a sua dor muda e inarticulada, do mesmo modo que a troca transforma a ganância crua do desejo e o uso transforma o anseio desesperado da necessidade - até que todos se tornem dignos de entrar no mundo transformados em coisas, reificados. Em cada caso, uma capacidade humana que, por sua própria natureza, é comunicativa e voltada para o mundo, transcende e transfere para o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser.

Hannah Arendt, in A Condição Humana



quarta-feira, dezembro 15, 2004

Alicerçando Poesia # 35 - Ana Hatherly


Mais - Menos

Quero dizer mais
e digo: mais

Mas cada vez
digo menos
o mais que sei
e sinto

terça-feira, dezembro 14, 2004

Alicerçando Imagens # 20 - Hiroshi Yoshida - Japão - 1876-1950



Snow in Nakazato, 1928



A Calm Day, 1930

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Alicerçando Poesia # 34 - Robert Lowell

Meia Idade
Agora, em pleno Inverno, o monótono
passeio a pé. Nova Iorque
penetra através dos meus nervos,
enquanto caminho
nas ruas apinhadas.

Aos quarenta e cinco,
e a seguir, a seguir?
Em cada esquina,
encontro o meu Pai,
com a minha idade, ainda vivo.

Pai, perdoa-me
as minhas ofensas
como eu perdoo
aqueles que
tenho ofendido!

Nunca subiste
ao Monte Sião, deixaste porém
pegadas
de dinossauro na crosta
onde devo caminhar.



Tradução de: Mário Avelar
In, Aos Mortos da União e Outros Poemas, Assírio & Alvim


domingo, dezembro 12, 2004

Alicerçando Palavras # 25 - Stefan Zweig sobre Kleist


(...) Kleist est le grand poète de l'Allemagne, non par sa volonté mais uniquement parce qu'il a subi sa nature tragique et parce que sa vie fut une tragédie: c'est justement ce qu'il y a en lui de sombre, d'opposé, de bridé et en même temps d'exalté, de prométhéen, qui rend ses drames inimitables, qui leur donne cette force particulière incompatible avec la froide intelligence d'un Hebbel ou l'ardeur instable d'un Grabbe. son destin et son atmosphère sont parties intégrantes de son oeuvre; c'est pourquoi il nous paraît étrange, voire absurde que l'on se soit souvent demandé jusqu'où il aurait conduit le drame allemand s'il avait échappé à sa destinée. L'essence de son être était tension et exaltation, la signification impérieuse de son destin était la destruction de lui-même par l'excès: aussi sa mort volontairement précoce est autant son chef-d'oeuvre que le Prince de Hombourg: car il faut toujours qu'à côté des puissants, qui dominent la vie, comme Goethe, il surgisse de temps en temps un homme qui dompte la mort et fasse d'elle un poème pour les siècles futurs. "Une belle mort est souvent la meilleures des vies". L'infortuné Günther qui a écrit ce vers à sa propre intention ne sut pas la réaliser, cette belle mort, il se laissa glisser dans le malheur et s'éteignit comme une veilleuse. Par contre Kleist, véritable tragique, parvient à faire de sa souffrance un monument impérissable. Toute douleur à un sens, quand la grâce de la création lui est accordée; elle devient alors la plus grande magie de la vie. Car seul celui dont l'âme est déchirée connaît la soif de la perfections, seul celui qui est traqué atteint l'infini.

Stefan Zweig, Le Combat avec le démon - Kleist-Hölderlin-Nietzsche, Belfond 1983

sábado, dezembro 11, 2004

Alicerçando Imagens # 19 - Hokusai - Japão -1760-1849



The Great Wave of Kanagawa, 1823/29, color wodcut 10x15 inches, Metropolitan Museum of Art, New York




Peonies & Canary, woodblock, National Museum of Tokyo

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Alicerçando Poesia # 34 - Egito Gonçalves


Notícias do Bloqueio



Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.


Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.


Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.


Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...


Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.


Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga


Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.


Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.


Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.




EM A VIAGEM COM O TEU ROSTO, LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, S.D., 3ª SÉRIE, P.317



quinta-feira, dezembro 09, 2004

Alicerçando Palavras # 24 - Stefan Zweig sobre Nietzsche


(...) C’est Jacob Burckhardt, son meilleur lecteur, qui, selon moi, a le mieux défini le véritable service dont nous sommes redevables à Nietzsche lorsqu’il lui écrivit que ses livres « acroissaient l’indépendence dans le monde ». Cet homme avisé et de vaste culture a bien écrit : l’indépendence dans le monde et non pas l’indépendence du monde. Car l’indépendence n’existe toujours que dans l’individu, chez le particulier, et elle ne croît pas avec le nombre : elle n’augmente pas non plus avec les livres et la culture : « Il n’y a pas dâge héroïque, il n’y a que des hommes héroïques ». C’est toujours l’individu qui introduit l’indépendece dans le monde et toujours uniquement pour lui seul. Car tout esprit libre est un Alexandre, il conquiert impétueusement toutes les provinces et tous les royaumes, mais il n’a pas d’héritiers ; toujours un empire libre devient la proie de diadoques et d’administrateurs, de commentateurs et de scoliastes, qui sont esclaves de la lettre. C’est pourquoi la grandiose indépendence de Nietzsche ne nous apporte pas en don une doctrine (comme le pensent les pédagogues), mais une atmosphère infiniment claire, d’une limpidité supérieure et pénétrée de passion, d’une nature démoniaque, qui se décharge en orages et en destructions. Lorsqu’on prend contact avec ses livres, on sent de l’ozone, un air élémentaire, débarassé de toute lourdeur, de toute nébulosité et de toute pesanteur ; on voit librement dans ce paysage heroïque jusqu’au plus haut des cieux et l’on respire un air unique, transparent et vif, un air pour les coeurs robustes et les libres esprits. Toujours la liberté est le sens final de Nietzsche – le sens de sa vie est celui de sa chute : de même que la nature a besoin des tempêtes et des cyclones pour donner carrière à son excès de force dans une révolte violente contre sa propre stabilité, de même l’esprit a besoin de temps en temps d’un homme démoniaque, dont la puissance supérieure se dresse contre la communauté de la pensée et la monotonie de la morale. Il a besoin d’un homme qui détruise et qui se détruise lui-même ; mais ces révoltés héroïques ne sont pas moins des sculpteurs et des formateurs de l’univers que les créateurs silencieux. Si les uns montrent la plénitude de la vie, les autres indiquem son inconcevable envergure ; car c’est toujours uniquement par des natures tragiques que nous prenons conscience de la profondeur du sentiment et ce n’est que grâce aux esprits démesurés que l’humanité reconnaît sa mesure extrême.

Stefan Zweig, Le Combat avec le démon (Kleist-Hölderlin-Nietzsche), Belfond 1983


quarta-feira, dezembro 08, 2004

Alicerçando Poesia - # 33 - Maria Olinda Beja - S. Tomé e Príncipe


enviado por Amélia Pinto Pais



MEDITANDO...

do que eu gosto mesmo é de correr na areia
sentindo-a roçar sob os meus pés
em tardes quentes loucas escaldantes
depois entrar pelo mar dentro qual sereia
que sabe dos segredos dos mortais
entrar...mas já não sair mais...

do que eu gosto mesmo é de sentir na pele
os salpicos provocantes das marés
e ter a sensação que o horizonte
é um todo homogéneo e uniforme
aonde o meu ser se delicia em tempestuosas
carícias de paixões incestuosas

do que eu gosto mesmo é de sentir no rosto
o vento quente do Sarah distante
que faz gemer as doces palmeiras
na rota insegura do meu peito ardente
e ficar assim feliz estendida
nas longínquas praias à espera da vida

do que eu gosto mesmo é de estar aqui
com chuva e calor com cheiro a cacau
escutando sempre o apito no cais
das vozes que amam o mar e a terra
breves mensagens de sonhos remotos
de barcos distantes perdidos ignotos

do que eu gosto mesmo é de saber que um dia
regressarei ao meu mar ausente
e irei saltar correr aqui e além
nas rochas quentes puras semi-nuas
saboreando o teu corpo amigo
de África-Mãe meu porto de abrigo

Maria Olinda Beja
Bô Tendê?



SONHO

Pudesse eu um dia voltar à minha terra
ver os coqueiros e os cafezais em flor
ver as sanzalas transformadas em casas dignas
de homens que trabalham noite e dia


pudesse eu tornar a ver-te mãe
e abraçar-te e beijar-te até não mais
e ver finalmente os meus irmãos de cor
respeitados como eu sempre sonhei

pudesse eu ver as palmeiras da avenida
gingando ao vento e ao grande calor
e pisar essa terra agora nossa

pudesse eu daqui dizer-vos tudo
que sinto e que quero transmitir
pois mesmo longe estarei sempre ao vosso lado


Maria Olinda Beja
Bô Tendê?


terça-feira, dezembro 07, 2004

Alicerçando Palavras # 23 - Antonioni


Extracto de uma entrevista de Jean-Luc Godard a Antonioni


(...)

JLG – Pensa que a tomada de consciência desse mundo novo tem repercussões sobre a estética, sobre a concepção do artista?

MA – Penso que sim. Isso muda a maneira de ver, de pensar; tudo muda. A Pop-Art demonstra que se procura outra coisa. A Pop-Art não deve ser subestimada. É um movimento “irónico”, e essa ironia consciente é muito importante. Os pintores da Pop-Art sabem muito bem que fazem coisas cujo valor estético ainda não está amadurecido –excepto Rauschenberg, que é mais pintor que os outros... Se bem que “a máquina de escrever mole” de Oldenburg seja muito bonita... Gosto imenso dela. Acho que é bom que tudo isso apareça. Só pode acelerar esse processo de transformação.

JlG – Mas o sábio tem a mesma consciência que nós? Raciocina como nós em relação ao mundo?

MA – Fiz essa pergunta a Stewart, o inventor do cérebro químico. Respondeu-me que o seu trabalho, tão específico, tinha, sem dúvida nenhuma, uma ressonância sobre a sua vida privada, até nas relações com a família.

(...)

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Alicerçando Imagens # 18 - Monica Vitti nos filmes de Antonioni



Eclipse




Deserto Vermelho - Monica Vitti e Richard Harris

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Alicerçando Palavras # 22 - Roland Barthes


Caro Antonioni...

Na sua tipologia Nietzsche distingue duas figuras: o padre e o artista. Padres temo-los hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião; e os artistas? Gostaria, caro Antonioni, de lhe pedir emprestados, por um instante, alguns traços da sua obra que me permitirão fixar as três forças ou, se preferir, as três virtudes que constituem a meu ver o artista. Passo a enumerá-las: a vigilância, a sabedoria e a mais paradoxal de todas, a fragilidade.


Ao contrário do padre, o artista espanta-se e admira; o seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento. É por você ser um artista que a sua obra está aberta ao Moderno. Muitos tomam o Moderno como uma bandeira de combate contra o velho mundo e os seus valores comprometidos; mas para si o Moderno não é o termo estático de uma oposição fácil; o Moderno é, bem pelo contrário, uma dificuldade activa para conseguir as mudanças do tempo, não apenas ao nível da grande História, mas no interior dessa pequena História cuja medida é a existência de cada um de nós. Começada logo após a última guerra, a sua obra seguiu assim, em cada momento, segundo um movimento de dupla vigilância, ao encontro do mundo contemporâneo e de si mesmo; cada um dos seus filmes foi, à sua própria escala, uma experiência histórica, ou seja o abandono de um antigo problema e a formulação de uma nova pergunta; quer isto dizer que você viveu e tratou a história dos últimos trinta anos com subtileza; não como a matéria de um reflexo artístico ou de um compromisso ideológico, mas como uma substância, a que você queria captar o magnetismo de obra em obra. Para si, os conteúdos e as formas são igualmente históricos; os dramas, como você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. O social, o narrativo, o neurótico, são apenas níveis, pertinências, como se diz em linguística, do mundo total, que é o objecto de todo o artista: há sucessão, não hierarquia dos interesses. Para falar com propriedade contrariamente ao pensador, um artista não evolui. Varre, à maneira de um instrumento muito sensível, o Novo sucessivo que lhe apresenta a sua própria história: a sua obra não é um reflexo fixo mas uma luminosa ondulação onde passam segundo a inclinação do olhar e as solicitações do tempo, as figuras do Social e do Passional, e as das inovações formais, do modo de narração ao emprego da Cor. A sua inquietação pela época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas antes a de um utópico que procura perceber em termos exactos o mundo novo, por que deseja esse mundo e quer já fazer parte dele. A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma vigilância de desejo.

Chamo sabedoria do artista, não a uma virtude antiga e ainda menos ao discurso medíocre, mas pelo contrário ao saber moral, à acuidade de discernimento que lhe permite não confundir nunca sentido e a verdade. Quantos crimes. a Humanidade não cometeu em nome da Verdade! E, todavia, essa verdade era apenas um sentido. Quantas guerras, repressões, terrores, genocídios, para o triunfo de um sentido! O artista, esse, sabe que o sentido de uma coisa não é a sua verdade; esse saber é uma sabedoria, uma louca sabedoria, poder-se-ia dizer, dado que ela o retira da comunidade, do rebanho dos fanáticos e dos arrogantes.

Nem todos os artistas terão, porventura, essa sabedoria: alguns hipostasiam o sentido. Essa operação terrorista chama-se geralmente realismo. Assim, ao declarar (numa entrevista com Godard): «sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam de todo realistas», você testemunhava ter um sentmento exacto do sentido: não o impunha, nem o abolia. Tal dialéctica dá aos seus filmes (vou empregar de novo a mesma palavra) uma grande subtileza: a sua arte consiste em deixar sempre aberta a via do sentido, e até certo ponto indecisa, por escrúpulo. É nisto que você cumpre com precisão a tarefa do artista de que o nosso tempo tem necessidade: nem dogmático, nem insignificante. Assim, nas suas primeiras curtas metragens sobre os varredores de Roma ou o fabrico têxtil em Torviscosa, a descrição crítica de uma alienação social vacila, sem se dissolver, em proveito de um sentimento mais patético, mais imediato, dos corpos no trabalho. Em Il Grido, o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a incerteza mesma do sentido: a errância de um homem que não pode confirmar a sua identidade em parte nenhuma e a ambiguidade da conclusão (suicídio ou acidente), levam o espectador a duvidar do sentido da mensagem. Essa fuga do sentido, que não é a sua abolição, permitiu-lhe, a si, abalar a rigidez psicológica do realismo. Em Deserto Rosso, a crise já não é uma crise de sentimentos, como em L'Eclisse, porque os sentimentos são, aí, firmes (a heroína ama o seu marido): tudo se entretece e dói numa zona segunda onde os afectos - a doença dos afectos - escapam a essa armadura do sentido que é o código das paixões. Enfim – para andar depressa - os seus últimos filmes trazem a crise do sentido ao cerne da identidade dos acontecimentos (Blow Up) ou das pessoas (professione: Reporter). No fundo, ao longo da sua obra, há um crítica constante, ao mesmo tempo dolorosa e exigente, dessa marca forte do sentido que se chama destino.

Essa vacilação - preferiria dizer com mais exactidão: essa síncope do sentido, segue vias técnicas, propriamente fílmicas (décor, planos, montagem) que não me cabe analisar, porque não tenho competência para tanto; estou aqui, parece-me, para dizer em que é que a sua obra, para além do cinema, compromete todos os artistas do mundo contemporâneo: o seu trabalho torna subtil o sentido do que o homem diz, conta, vê ou sente, e essa subtileza do sentido, essa convicção de que o sentido não se detém grosseiramente na coisa dita, mas se desloca sempre para
mais longe, fascinado pelo fora-do-sentido, é, creio, a convicção de todos os artistas, cujo objecto não é esta ou aquela técnica, mas esse fenómeno estranho, a vibração. O objecto representado vibra, em detrimento do dogma. Penso num dito do pintor Braque: «O quadro está terminado quando apaga a ideia.» Penso em
Matisse desenhando, da sua cama, uma oliveira, e pondo-se, ao fim de algum tempo, a observar os espaços vazios entre os ramos, e descobrindo que através desta nova visão, escapava à imagem habitual do objecto desenhado, ao estereótipo «oliveira». Matisse descobria assim o princípio da arte oriental, que quer sempre pintar o vazio, ou melhor ainda, que capta o objecto figurável no instante raro em que o a plenitude da sua identidade cai bruscamente num novo espaço, o do Interstício. De uma certa maneira, a sua arte é ela também uma arte do Interstício (L'Avventura seria a demonstração brilhante desta afirmação), e por isso, de uma certa maneira também, a sua arte tem alguma relação com o Oriente.
Foi o seu filme sobre a China que me deu vontade de viajar até lá; e se esse filme foi provisoriamente rejeitado por aqueles que deveriam ter compreendido que a sua força de amor era superior a toda a propaganda, foi porque o julgaram segundo um reflexo de poder e não segundo uma exigência de verdade. O artista não tem poder, mas tem uma certa relação com a verdade; a sua obra, sempre alegórica se é uma grande obra, toma-a como um manto;o seu mundo é o Indirecto da verdade.

Porque é que esta subtileza do sentido é decisiva? Precisamente porque o sentido, assim que é fixado e imposto, logo que deixa de ser subtil, converte-se num instrumento, num lance do poder. Subtilizar o sentido é pois uma actividade política segunda como o é todo o esforço que vise triturar, perturbar, desfazer o fanatismo
do sentido. Coisa que não é destituída de perigo. Assim, a terceira virtude do artista (utilizo o termo «virtude»no sentido latino), é a sua fragilidade: o artista nunca tem a certeza de viver, de trabalhar; proposição simples mas séria: a sua eliminação é uma coisa possível.

A primeira fragilidade do artista é esta: faz parte de um mundo em mudança e está, ele mesmo, também em mudança; é banal, mas para o artista é vertiginoso, porque não sabe se a obra que propõe é produzida pela mudança do mundo ou pela mudança da sua subjectividade. Você esteve sempre consciente, assim parece, dessa relatividade do Tempo declarando, por exemplo, numa entrevista: "Se as coisas de que falamos hoje não são aquelas de que falávamos logo a seguir à guerra, é porque, de facto, o mundo à nossa volta mudou, e porque também nós mudámos. Mudaram as nossas exigências, os nossos propósitos, os nossos temas.» A fragilidade aqui é a de uma dúvida existencial, que se apodera do artista à medida que ele avança na sua vida e na sua obra; essa dúvida é difícil, dolorosa até, porque o artista não sabe nunca se o que quer dizer é um testemunho verídico sobre o mundo tal como mudou ou o simples reflexo egoísta da sua nostalgia
ou do seu desejo: viajante einsteiniano, jamais sabe se é o comboio ou o espaço-tempo que se move, se é testemunha ou homem de desejo.

Um outro motivo de fragilidade é, paradoxalmente, para o artista, a firmeza e a insistência do seu olhar. O poder, qualquer que seja, porque é violência, não olha nunca; se olhasse um minuto mais (um minuto demais), perderia a sua essência de poder. O artista, esse, detem-se e olha longamente. Chego a imaginar que você se fez cineasta porque a câmara é um olho, constrangido, por disposição técnica, a olhar. Aquilo que você acrescenta a essa disposição, comum a todos os cineastas, é um olhar para as coisas radicalmente, até à sua exaustão. Por um lado, você olha
longamente, para o que não lhe era pedido que olhasse, nem pela convenção política (os camponeses chineses) nem pela convenção narrativa (os tempos mortos de uma aventura). Por outro lado, o seu herói privilegiado é aquele que olha (fotógrafo ou repórter). Isso é perigoso, porque olhar mais tempo do que aquilo que nos é pedido (insisto neste suplemento de intensidade), perturba todas
as ordens estabelecidas, quaisquer que sejam, na medida em que, normalmente, mesmo o tempo do olhar é controlado pela sociedade; donde, quando a obra escapa a esse controlo, a natureza escandalosa de certas fotografias e de certos filmes: não os mais indecentes ou os mais agressivos, mas simplesmente os que têmo mais tempo de pose.

O artista está, portanto, ameaçado, não apenas pelo poder constituído - o martirológico dos artistas censurados pelo Estado ao longo de toda a História, seria desesperantemente longo - mas também pelo sentimento colectivo sempre possível, de que uma sociedade pode muito bem passar sem arte: a actividade do
artista é suspeita porque perturba o conforto, a segurança dos sentidos estabelecidos, porque é ao mesmo tempo dispendiosa e gratuita, e porque a sociedade nova que se procura, através de regimes tão diferentes, ainda não decidiu o que deve pensar, o que terá que pensar do luxo. A nossa sorte é incerta, e essa incerteza não tem uma relação simples com as saídas políticas que possamos imaginar para o mal-estar do mundo; depende dessa História monumental, que decide de uma maneira que às vezes mal se concebe, não tanto as nossas necessidades, mas os nossos desejos. Caro Antonioni, tentei dizer na minha linguagem intelectual as razões que fazem de si, para além do cinema, um dos artistas do nosso tempo. O louvor não é simples, como sabe; porque ser
artista, hoje, é uma situação que deixou de ser sustentada pela boa consciência duma grande função sagrada ou social. Não é sequer tomar assento serenamente no Panteão burguês dos Faróis da Humanidade; significa, no momento de cada obra, dever encarar em si esses espectros da subjectividade moderna, que são, desde que deixámos de ser padres, o abatimento ideológico, a má consciência social, a atracção e a repulsa da arte fácil, o temor da responsabilidade, o incessante escrúpulo que dilacera o artista entre a solidão e a gregaridade. É preciso, portanto, que você, hoje, aproveite este momento tranquilo, harmonioso, reconciliado, em que toda uma colectividade se põe de acordo para reconhecer,
admirar, amar a sua obra. Porque amanhã o trabalho árduo continua.

Roland Barthes

Texto publicado em Fragments d'un discours amoureux.
Tradução de M. S. Fonseca.




quinta-feira, dezembro 02, 2004

Alicerçando Poesia - # 32 - Li Shang-Yin


Os túmulos Lo-Yu

Com sombras de crepúsculo no coração,
Passeio por entre os túmulos de Lo-Yu
Para ver o sol, em toda a sua glória,
Sepultado pela noite que chega.

Tradução de: José Alberto Oliveira


quarta-feira, dezembro 01, 2004

Alicerçando Palavras # 21 - Alejandra Pizarnik


Fragmentos para dominar el silencio

I

Las fuerzas del lenguaje son las damas solitarias, desoladas, que cantan a través de mi voz que escucho a lo lejos. Y lejos, en la negra arena, yace una niña densa de música ancestral. ¿Dónde la verdadera muerte? He querido iluminarme a la luz de mi falta de luz. Los ramos se mueren en la memoria. La yacente anida en mí con su máscara de loba. La que no pudo más e imploró llamas y ardimos.

II
Cuando a la casa del lenguaje se le vuela el tejado y las palabras no guarecen, yo hablo.
Las damas de rojo se extraviaron dentro de sus máscaras aunque regresarán para sollozar entre flores.

No es muda la muerte. Escucho el canto de los enlutados sellar las hendiduras del silencio. Escucho tu dulcísimo llanto florecer mi silencio gris.

III
La muerte ha restituido al silencio su prestigio hechizante. Y yo no diré mi poema y yo he de decirlo. Aún si el poema (aquí, ahora) no tiene sentido, no tiene destino.


Alejandra Pizarnik, de La extracción de la piedra de la locura, 1968