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sexta-feira, agosto 31, 2007

Alicerçando Palavras # 132 - Albert Camus


(...) Quand à moi, je ne voulais pas qu'on m'aidât et justement le temps me manquait pour m'intéresser à ce qui ne m'intéressait pas.

Camus, Albert, L'Etranger



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terça-feira, agosto 28, 2007

Alicerçando Imagens # 118 - Rodin



Le Cercle des Amours (The Circle of Lovers)
circa 1880
graphite, pen, sepia ink wash and gouache on paper
19,5 x 15,1 cm


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segunda-feira, agosto 27, 2007

Alicerçando Poesia # 261 - Alexei Bueno


Nascemos carne. E a cada dia
Nos vamos transformando em sonho.
Há sempre um patamar tristonho
Na escada em que antes não havia.

Há sempre um quarto em que vivemos
E nunca vimos. Sempre há um morto
Que bate à porta. Há sempre um porto
Que jamais houve e de onde viemos.

Há uma manhã cinza na feira
Que não se acaba há muitos anos.
Há uma mulher, nua entre panos,
Que não é nossa a vida inteira.

O tempo espera, inalterado
Como um licor, que nós subamos
Por ele abaixo, nós que vamos
Descendo-o acima em passo ousado.

Atrás há a aurora. À frente o nada.
No meio a confusão das luas.
Ah! quem voltasse às mesmas ruas
Em senso inverso, até a entrada.

Quem desse as costas à saída
Certa e voraz, e, dessa sorte,
Fosse afastando-se da morte
Até a primeira hora da vida

E seu mistério, e se encarnasse
Nos seus eus idos, e fugisse
Por si acima, até que ouvisse
O choro antigo, e ainda o passasse.

Nascemos carne, e ao sonho vamos.
Somos o fio que desfaz
Toda a tapeçaria, mas
Quem é que o puxa, nem sonhamos.

Vamos fazendo-nos de ar
De crianças rijas que já fomos,
Vamos como explodindo em gomos
De ser, um fruto a se espalhar.

Nossos amigos são de vento
Cada vez mais. As nossas casas
Grãos que o sol doura. Soam asas
No nosso cofre mais sedento.

Para isso apenas nos gerastes,
Para ser sonho, mães de sonho.
Há sempre um pássaro medonho
Nos nomeando entre umas hastes.

Há sempre um baile de sumidos
Na íntima praça inexistente.
Há um branco sol sempre presente
Na noite em que vamos perdidos.

Há um rosto cruel que nos exorta.
E escadas. E a manhã na feira
Que vai durando a vida inteira.
Há o patamar. E um beijo. E a porta.


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sexta-feira, agosto 24, 2007

Alicerçando Poesia # 260 - Pedro Kilkerry


É o Silêncio

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha..
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas...Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse seu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmera muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
.....................................................
E abro a janela. Ainda a lua esfia
Últimas notas trêmulas. O dia
Tarde florescerá pela montanha.

E oh! Minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego...


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quarta-feira, agosto 22, 2007

Alicerçando Poesia #259 - António Ramos Rosa


O Instante

Quem posso eu chamar, que palavras lúcidas
e sóbrias, veementes
poderão despertar as ondas felizes,
que outro apelo, que outro alento
aproximará as árvores, o hálito das suas frases?

Quem me oferecerá no seu corpo o estuário das mãos,
que prodígios da terra deslizarão no repouso,
que declives, que jardins, que palácios diminutos,
que intangíveis enlaces, que adoráveis volumes?
Quem me dará o sossego da fábula mais pura
com o exacto relevo imediata e vagarosa?

Real e perfeita num deslizar de gozo, em lábios que
emudecem deslumbrados,
real e completo, secreto, imediato, maravilhoso
é o instante que descobre o animal ardente,
a mais ardente exactidão
a mais oferecida à claridade,
a mais contínua, a mais profunda suavidade.

Estamos dentro de um seio onde nascemos
como de uma montanha latente, somos nascente confusão
de múrmurios silvestres e a magia natural
de um silêncio límpido,, abraçamos a maravilha
aqui e agora, reconcentração na felicidade,
na evidência de delícias, múltiplas, fatais.


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segunda-feira, agosto 20, 2007

Alicerçando Palavras # 131 - Antonin Artaud


Pensar sem ruptura mínima, sem astúcia no pensamento, sem nenhuma dessas súbitas imposturas a que a minha medula está habituada como posto-emissor de correntes.

A minha medula diverte-se por vezes com esses jogos, deleita-se com esses jogos, com esses raptos furtivos a que preside a cabeça do meu pensamento.

Por vezes, bastar-me-ia uma só palavra, uma pequena palavra sem importância, para ser grande, para falar no tom dos profetas, uma palavra testemunho, uma palavra exacta, uma palavra subtil, uma palavra bem macerada na minha medula, surgida de mim, que se mantivesse no extremo último do meu ser,

e que, para toda a gente, não fosse nada.

Sou testemunho, sou o único testemunho de mim próprio. Esta crosta de palavras, estas imperceptíveis transformações do meu pensamento em voz baixa, da pequena parcela do meu pensamento que eu pretendo que estava já formulada, e que aborta,

sou o único juíz capaz de lhe medir o alcance.


Artaud, Antonin, O Pesa-Nervos, Hiena Editores



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sábado, agosto 18, 2007

Alicerçando Poesia # 258 - Pedro Tamen


O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira,até ser ele,
é doutro e mesmo,é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos,dedos ,sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes,fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

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quinta-feira, agosto 16, 2007

Alicerçando Imagens # - 117



Atelier, 1987, acrílico s/tela, 97x130cm


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segunda-feira, agosto 13, 2007

Alicerçando Poesia # 257 - Eugénio de Andrade


Mar, mar e mar

Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
Miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que a minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
Luz molhada onde desperta
Meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

Não, o mar não é nardo nem açucena.
É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios de espuma.
É sangue,
sangue onde a luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.

Um pedaço de lua insiste,
insiste e sobe lenta arrastando a noite.
Os cabelos da minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita, abrindo nos meus dedos.

Eu também não sei o que é o mar.
Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.


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sexta-feira, agosto 10, 2007

Alicerçando Palavras # 130 - Ilse Losa


(...)Finalmente comecei a contar coisas. Mas só me apercebi de que ele me estava a escutar quando, na altura em que falei de crianças, me interrompeu:

- Eu via levarem crianças às carradas para a câmara da morte com acompanhamento de música sinfónica.

Ao despedir-me afaguei-lhe, ao de leve, o rosto amargurado de tanto saber e deixei-o, na solidão, com os seus monstros.

Tive notícias de que morreu e de que no último ano da sua existência de sobrevivente lhe fora concedida a clemência de uma segunda meninice. Tudo o resto apagara-se-lhe da memória. Ainda via os filmes de animais, mas não se flagelava com o noticiário para se certificar de que a História dos Homens é feita de crueldades. Montava cavalos, picava-os com esporas e gritava: Anda! Houp! Também dizia a pequena oração da noite que a mãe lhe ensinara e que acabava assim: "Protege-me, Senhor, para que nada de mal me aconteça no dia de amanhã. Amen."



Ilse Losa, Caminhos sem Destino, extracto do conto O Sobrevivente ou Buchenwald



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terça-feira, agosto 07, 2007

Alicerçando Poesia # 256 - Eugénio de Andrade


Até amanhã

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito, um grito
apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.


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domingo, agosto 05, 2007

Alicerçando Imagens # 116 - Mark Rothko

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quarta-feira, agosto 01, 2007

Alicerçando Palavras # 129 - Ilse Losa


A JARRA QUEBRADA


O cinzeiro de louça azul, em cima da secretária, ostenta a sua mocidade. A seu lado a jarra velha, meio partida, sem flores, que fala entre suspiros:

Deitou fora o cinzeiro de vidro e comprou-te a ti. Não tardará que chegue a minha vez e apareça uma jarra nova. És bonito, azul e luzente. Fazes-lhe ver a minha decadência. Se ainda cá estou é unicamente por ele ser um sentimental. Não o admitiria nunca, mas é a verdade. Era bela a senhora que me comprou na loja de porcelanas. Fui embalada numa caixa vermelha com letras douradas. Quando as mãos dele me tiraram dali vi-me num quartinho em cima de uma mesa cheia de livros. Neles o meu dono estudava pela noite dentro. A bela senhora visitava-o amiúde. De todas as vezes trazia-lhe uma rosa que, depois de me ter enchido de água, punha dentro de mim. Os dois abraçavam-se, beijavam-se, falavam, riam. Nesse tempo ele era alegre. Interrompia de quando em quando as leituras, afagava e cheirava as pétalas da rosa, por vezes até me afagava também a mim, não sei se por distracção. Mas um dia discutiram, havia rancor e tempestade nas suas palavras. A bela senhora saiu, bateu com a porta e não tornou a vir. E embora eu ansiasse por uma rosa, nunca mais alguma voltou a saciar a sua sede dentro de mim. Ao cabo de algum tempo o meu dono meteu-me numa mala juntamente com os livros. Vim então parar aqui a esta secretária. Numa infeliz manhã a mulher da limpeza deixou-me cair ao chão. Parti um bom bocado da minha borda e senti-me estremecer. Ele entrou, repreendeu a mulher, e receei que me fosse atirar para o cesto dos papéis, pois pegou em mim e espreitou para debaixo da secretária como quem procura alguma coisa. Depois abanou a cabeça e tornou a colocar-me neste lugar. Desde então não passo de uma mísera jarra partida, e ele já não tem olhos para mim. Mas eu continuo a ter olhos para ele. Conheço-lhe os hábitos, os gestos, os humores. A manhã já vai alta quando aqui chega, porque gosta de dormir até tarde. Um tanto contrafeito remexe no monte de papéis acumulados. Começa a escrever, a fazer contas, a falar ao telefone. Aparecem pessoas, falam de impostos, dívidas, letras e coisas assim. Ele tira apontamentos no bloco, aí atrás de ti. É desconsolador ser-se um bloco de notas. As páginas são arrancadas sem piedade, e quando já não resta nenhuma vai-se parar ao lixo. Uma vida curta dolorosa, acho que deve estar grata por ao menos ser uma jarra. O rapaz no gabinete ao lado está a ser constantemente chamado: copie isto, leve aquilo, despache-se. É pálido, fala mansinho, abaixa a cabeça. Mas mal o meu dono se ausenta, entra aqui, senta-se, estende as pernas, gira o cadeirão, fuma, fala ao telefone. Pois é. Vais ter sorte. Até ele, o rapaz, te vai utilizar. À noite estarás a transbordar de cinzas e todas as manhãs serás lavado. Sempre que o meu dono sacudir, para dentro de ti, a cinza ainda cadente, os seus dedos hão-de roçar-te ao de leve, mas quando se enfronha nos livrinhos amarelos, a que chama policiais, eles ficarão pousados na tua borda, enquanto o cigarro se vai extinguindo entre o indicador e o médio. Oh sim, eu sei. Também a mim voltaram a tocar-me muito ao de leve, assim como as borboletas que, de tempos a tempos, vêm descansar sobre o meu vidrado. Foi quando pela primeira vez veio a frágil senhora ruiva, menos bonita que a outra que me tinha comprado e oferecido. Sentaram-se naquele sofá. Falaram em voz baixa, e ele segurou-lhe as mãos nas suas. Beijava-lhe os olhos e ele olhava-o com tamanha tristeza que me fazia dó. Veio o dia em que chegou desesperada e ele a beijou na boca, no pescoço, nos braços. Disse que a queria só para si. A porta abriu-se. Entrou o rapaz. Assustada, a senhora deu um salto para o lado, e quando ficaram de novo a sós, começou a chorar. Que não podia voltar mais, disse, e ele, de rosto sombrio, conduziu-a à porta. Depois sentou-se e aterrou a cabeça nos braços. Ficou assim não sei se pouco se muito tempo, só sei que o senti como uma eternidade. Por fim ergueu-se, deixou ficar os papéis espalhados e saiu. Não voltei a ver a frágil senhora ruiva. Algo como uma mágoa paira nesta sala. Quando as luzes se apagam e as sombras da noite engolem cores e contornos ouço soluços.

Como hei-de saber de que é que os homens constroem a sua felicidade? Como hei-de saber o que os leva a renunciar aos seus sonhos e desejos? Sou uma jarra. Uma jarra partida com os dias contados. Tu és novo e bonito. É a tua vez de amar e de congeminar.



Ilse Losa, Caminhos sem Destino, Afrontamento



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