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domingo, outubro 31, 2004

Alicerçando Poesia # 20 - Rodolfo Alonso - Argentina



(DES) DIZER


1

pátria alucinada
esguelhada
enlameada

pátria esfarrapada

pátria? Segada
desgastada
in extremis

à borda
(a bordo)
da asfixia

oprimida
por céus
enormes
grandes mares
megapolis
distâncias e trigais

esmagada
por tanta
riqueza
abandonada.


2

ciano de cianose
espera

óxido de oxigénio
espera

terror a todo o terreno
tendal dos estendidos
espera

salve-se quem se salva
espera?

fedor dos falidos
espera

náufragos da náusea
espera

espera a tua esperança
(des)

perita em esperança
(des) es

exprime a tua esperança
(des) espera

des dor aos teus
(des) esperança.


3

pode algo
a metáfora?

se não posso poder
se poder não se pode
que possam as palavras
que as palavras apodreçam
que percam as palavras

pátria mátria filhanossa
que não estás nos reinos
venha a nós o teu céu
vinga-nos a tua vingança
vinga-te de verdugos
vinga-te de inocentes
ingénuos em espadas
assustados messiânicos

messias do medíocre
não te perdoam dívidas
não perdoam teus deveres
fazem sua vontade
sua santíssima gana
vomitam-nos por tíbios
eu não sou o caminho
que não venham a mim
não deixem as crianças
assim na terra
nunca haverá mais céus?

o pão nosso?
de cada dia?
dai-no-lo dai-no-lo dai-no-lo
com o suor
da nossa dívida
hoje? hoje? agora?
assim como nós não perdoamos
nem perdoaremos
com o gelado suor
da agonia
procura despertar
tantos lázaros
felizes na miséria
ébrios de boa morte
ausentes de viver
sem cor nem calor

pátria mátria filhanossa
não há génio no engenho
não há voo na paródia
não há decadência útil
não há finais dourados
que conduzam ao céu
os pobres de espírito.



Tradução de José Augusto Seabra

In, JL, 06-02-2002


sábado, outubro 30, 2004

Alicerçando Imagens # 11 - Pablo Picasso



Pablo Picasso, La pique cassée, Vauvenargues, 13 Outº 1959 - 53,4x64cm Posted by Hello

sexta-feira, outubro 29, 2004

Alicerçando Poesia # 19 - Violeta Parra



Gracias a la Vida

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros que cuando los abro
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes al hombre que yo amo.

Gracias a la vida que me a ha dado tanto
Me ha dado el oído que en todo su ancho
Graba noche y día grillos y canarios
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos
Y la voz tan tierna de mi bien amado.

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la marcha de mis pies cansados
Con ellos anduve ciudades y charcos
Playas y desiertos, montañas y llanos
Y la casa tuya, tu calle y tu patio.

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio el corazón que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano
Cuando miro al bueno tan lejos del malo
Cuando miro el fondo de tus ojos claros

Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así y distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto.

Gracias a la vida que me ha dado tanto.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Alicerçando Palavras # 13 - Fernando Pessoa - 1888-1935


A poesia encontra-se em todas as coisas - na terra e no mar, no lago e na margem do rio. Encontra-se também na cidade - não o neguemos - é evidente para mim, aqui, enquanto estou sentado, há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no barulho dos carros nas ruas, em cada movimento diminuto, comum, ridículo, de um operário, que do outro lado da rua está pintando a tabuleta de um açougue.

Meu senso íntimo predomina de tal maneira sobre meus cinco sentidos que vejo coisas nesta vida - acredito-o - de modo diferente de outros homens. Há para mim - havia - um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Há para mim uma plenitude de sugestão espiritual em uma galinha com seus pintinhos, atravessando a rua, com ar pomposo. Há para mim um significado mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo, nas velhas latas num monturo, numa caixa de fósforos caída na sarjeta, em dois papéis sujos que, num dia de ventania, rolarão e se perseguirão rua abaixo. É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atónito diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se recordando.


Obra em Prosa


terça-feira, outubro 26, 2004

Alicerçando Poesia # 18 - Marguerite Yourcenar



Respostas

- Que tens para consolar a cova,
coração insolente, coração incontido?
O fruto maduro pende e sossobra.
Que tens para consolar a cova?
- Tenho o tesouro de ter sido.

Que tens para suportar a vida,
Coração doido, farto de pulsar?
Coração sem brilho e sem jaça.
Que tens para suportar a vida?
- Piedade de tudo o que passa.

Que tens para desprezar o mundo.
Coração duro, fácil de quebrar,
Que tens para desprezar o mundo,
Que tens mais que nós, mais fundo?
- Capaz de me desprezar.




Cantilena Para Um Tocador De Flauta Cego

Flauta da noite que se cerra,
Presença líquida de um pranto,
Todos os silêncios da terra
São as pétalas do teu canto.

Espalha teu pólen na alfombra
Do catre que por fim te acoite
Mel de uma boca de sombra
Como um beijo na boca da noite

E pois que as escalas que cansas
Nos dizem que o dia acabou,
Faz-nos crer que os céus dançam
Porque um cego cantou.


Tradução de Mário Cesariny


segunda-feira, outubro 25, 2004

ALICERÇANDO IMAGENS # 10 - WILLIAM KENTRIDGE (África do Sul)



Com um obrigada a Paiva Raposo que mo deu a conhecer.



Desenho de Felix in Exile, 1994 - carvão e pastel sobre papel, 120x150cm Posted by Hello

sexta-feira, outubro 22, 2004

Alicerçando Poesia #17 - Matsuo Basho - 1644-1694


Ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante.


De que árvore florida
chega? Não sei.
Mas é seu perfume...


Ruídos nas ramas.
Trêmulo, meu coração detem-se
e chora na noite...

quinta-feira, outubro 21, 2004

Alicerçando Palavras # 12 - Clarice Lispector

Medo da Eternidade


Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante
da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só
me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um
jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.


LISPECTOR, Clarice, Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.

quarta-feira, outubro 20, 2004

Alicerçando Poesia # 16 - Mendinho séc. XIII

Cantiga de Amor

Seriam'eu na ermida de San Simón
E cercáronmi as ondas que grandes son
Eu atendend'o meu amigo! E verrá?

Estando na ermida, ant'o altar
Cercáronmi as ondas grandes do mar
Eu atendend'o meu amigo! E verrá?

E cercáronmi as ondas, que grandes son
Nem ei barqueiro nem remador
Eu atended'o meu amigo! E vérrá?

E cercáronmi as ondas do alto mar
Non ei barqueireo nem sei remar
Eu atended'o meu amigo! E verrá?

Non ei barqueiro nem remador
Morrerei, fremosa, no mar maior.
Eu atendend'o meu amigo! E vérra?

Non ei barqueiro nen sei remar
Morrerei eu, fremosa, no alto mar
Eu atended'o meu amigo! E verrá?

terça-feira, outubro 19, 2004

Alicerçando Imagens # 9 - Francis Bacon - 1909-1992




Retrato de George Dyer Falando, 1966 Posted by Hello


The creative process is a cocktail of instinct, skill, culture and a highly creative feverishness. It is not like a drug; it is a particular state when everything happens very quickly, a mixture of consciousness and unconsciousness, of fear and pleasure; it’s a little like making love, the physical act of love.

Francis Bacon

segunda-feira, outubro 18, 2004

Alicerçando Poesia # 15 - John Donne - 1572-1631


ELEGIA X – SONHO

Imagem da que amo, mais do que a ela própria,
Cuja impressão clara no meu fiel coração
Me torna Medalha sua, e a obriga a amar-me,
Como os reis às moedas, a que o seu selo impõe
O valor: vai, e retira daqui o meu coração
Que se tornou grande e bom demais para mim.
As Honras oprimem os espíritos fracos, e aos sentidos
Embotam-nos coisas fortes: se maiores, menos as vemos.

Quando partires, e a Razão partir contigo,
Então a Fantasia será Rainha e Alma, e tudo;
Ela oferece alegrias mais mesquinhas do que tu,
Mais convenientes e proporcionadas.
Então, se sonhar que te tenho, eu tenho-te,
Pois todas as nossas alegrias são só fantasia.
Assim fujo à dor, porque a dor é verdadeira
E o sono, que fecha os sentidos, exclui tudo o resto.

Depois de tal fruição irei acordar
E, além do acordar, nada mais lamentarei.
Ao amor farei Sonetos ainda mais gratos
Que se mais honras, choros e dores fossem gastos.
Mas querido coração, e mais querida imagem: ficai.
Ah! as veras alegrias no melhor são sonho só.
Apesar de ficares, esvais-te depressa demais:
Pois até no início o Pavio da vida é um morrão.

Cheio de amor dela, possa eu antes tornar-me
Louco com um grande coração, que idiota sem nenhum.


Tradução de: Helena Barbas
In, Elegias Amorosas, Assírio & Alvim


sábado, outubro 16, 2004

Alicerçando Palavras # 11- Da tabuinha órfica de Petelia (British Museum)


Petelia tablet, from the 4th-3rd Century BCE, which was found in excavations of a tomb near Petelia in southern Italy, and is now in the British Museum. It was written in Greek on a sheet of thin gold, rolled up and placed in a hexagonal cylinder on a delicate gold chain, and worn as an amulet by the deceased, to give protection and direction in the underworld.


Thou shalt find on the left of the House of Hades a Well-spring,
And by the side thereof standing a white cypress.
To this well-spring approach not near.
But thou shalt find another by the Lake of Memory,
Cold water flowing forth, and there are Guardians before it.
Say: "I am a child of Earth and of Starry Heaven;
But my race is of Heaven (alone). This ye know yourselves.
And lo, I am parched with thirst and I perish. Give me quickly
The cold water flowing forth from the Lake of Memory."
And of themselves they will give thee to drink from the holy well-spring,
And thereafter among the other heroes thou shalt have lordship....




sexta-feira, outubro 15, 2004

Alicerçando Fotos # 4





Art Gallery de Hamburgo Posted by Hello



Mais uma belíssima fotografia tirada daqui.

quinta-feira, outubro 14, 2004

ALICERÇANDO POESIA # 14 - LUÍS VEIGA LEITÃO



A Criança

Aberta, discreta
ou desatenta
é como o poeta:
não mente, inventa


*** * ***


mais que a linha...

Mais que a linha e a forma
é o fluxo dos teus dedos
- um fio de água secreta
que muda a forma e o lugar
como a voz do poeta


*** * ***


ALQUINIA DA CRIAÇÃO

Quanta geometria negra
por entre sílabas ardendo à míngua?
- para que a fúria da palavra encontre
pela porta do fogo
o ouro da língua


*** * ***


OS GRANDES AMIGOS

São como as árvores
de grande porte.
Qdo elas partem
as raízes ficam
aquém da morte


Rosto por Dentro, Edições Afrontamento


quarta-feira, outubro 13, 2004

Alicerçando Imagens #8 - Alberto Sughi



Alberto Sughi - Interior, 1966 Posted by Hello


When I feel that a painting has its own voice and is coming alive, I want to live with it, talk to it, quarrel with it, and agree with it.

Alberto Sughi


terça-feira, outubro 12, 2004

Alicerçando Palavras #10 - Sebastião da Gama


Na contra-corrente


Março, 23

- Tens muito que fazer?

- Não. Tenho muito que amar.

(Não entendo ser professor de outra maneira. E não me venham dizer que isso assim cansa e mata; morrer-se, sempre se morre: e à minha maneira tem-se a consolação de não ser em vão que se morre de cansaço.

O nosso metodólogo ralha comigo às vezes. E que tem ele feito? E que está ele a fazer?

Simples, muito simples, a lição de hoje. Mas a gosto dos rapazes, que mais que tudo adoram os trechos que tenham ares de teatro. Já em Setúbal eles mo exigiam. Pena é que no livro não haja muito mais; a não ser que a comédia chegue a contar tantas representações como as revistas do Parque Mayer, temos de limitar as aulas teatrais a quatro ou cinco.

O trecho dialogado é um bom campo para aprender a ler. O mocinho que, num trecho vulgar, não é capaz ou tem vergonha de ler com naturalidade o discurso directo, aqui sente-se actor e aspira ao aplauso da plateia. Faz voz de menina (sacrifício supremo, mas feito com prazer) se tanto for necessário.

Vou aproveitar este gosto dos moços no terceiro período. Já que eles gostam de ler teatro, mas têm mostrado pouco interesse em escrevê-lo eles próprios, vou subtilmente obrigá-los a serem finalmente autores: bastará, tenho a certeza, anunciar que as peças escritas serão representadas na aula. Para lhes abrir o apetite, poderei até levar à cena a que o Gabriel escreveu. O que não garanto é que se encontrem com facilidade as "ingénuas": enquanto se trata de coisas do livro, ainda a história vai bem; mas ali, a representar duas companheiras suas de todos os dias, a Filomena e a Lourdes, fia mais fino. Experimentemos, no entanto.

Este capítulo também pode servir de sugestão para uma festa escolar. Vou aproveitar, para a festa, a sugestão de um professor: uma turma oferecer a outra uma festazinha.

E eis como já não vou entrar na semana que vem de mãos vazias. Tanto mais que surge com isto uma excelente oportunidade (enfim!) para lhes falar nos cartazes...

segunda-feira, outubro 11, 2004

Alicerçando Imagens #7 - Amadeo de Souza-Cardoso





Barcos, óleo sobre tela, 30,2x40,6cm - CAM - Lisboa Posted by Hello

quinta-feira, outubro 07, 2004

Alicerçando Poesia #13 - Czeslaw Milosz



PEQUENO POEMA SOBRE O FIM DO MUNDO

Quando chegar o fim do mundo,
A abelha estará sobrevoando a espora-de-galo,
O pescador estará consertando a rede brilhante,
Os delfins estarão saltando alegres no mar,
Os pardais estarão se reunindo sobre o telhado,
A pele da cobra brilhará como sempre.

Quando chegar o fim do mundo,
As mulheres irão para debaixo dos guarda-sóis,
O bêbado adormecerá em algum lugar sobre a relva,
Os verdureiros farão suas vendas gritando,
O barco a vela amarela chegará à ilha,
As violas soarão no ar,
Abrindo a noite estrelada.

Quem esperar raios e trovões
Vai decepcionar-se;
Quem aguardar um sinal e trombetas de anjos,
Nem acreditará que o fim já chegou.

Enquanto o sol e a lua brilharem acima,
Enquanto o inseto visitar a rosa,
Enquanto crianças coradas ainda se alegrarem,
Ninguém acreditará que o fim já chegou.

Até que o velhote grisalho, que poderia ser profeta,
Mas não é profeta, porque o seu trabalho é outro,
Dirá ao amarrar tomates:
Nem haverá um outro fim do mundo.



HISTÓRIA DA LITERATURA POLONESA


Lá, onde as gaivotas dormindo em névoas nadam sobre
superfícies tranqüilas,
e além, onde navios sobem e descem.
A notícia a esse respeito corre sob a luz da montanha,
mostrando o poeta à mesa,
no quarto frio, numa cidade pouco conhecida,
quando o relógio bate na torre.
Seu lar está nos espinhos do pinheiro, no balido da corça,
Na explosão das estrelas dentro do punho.
O relógio não lhe mede o poema. Ribomba
como a idade do mar na profundeza da concha
que jamais silencia. Dura. E o seu sussurro
que imita os homens é forte.

Feliz o povo que possui poetas
e em seus tormentos não caminha calado.
Apenas os oradores não gostam dos poetas




ARS POETICA

Sempre aspirei por uma forma mais ampla,
que não fosse nem poesia nem prosa em demasia
e permitisse a compreensão, sem expor ninguém,
nem autor nem leitor, a grandes tormentos.

Em sua essência, a poesia é algo horrível:
Nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de
nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um
tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.
É por isso que se afirmam, com razão, que a poesia é ditada
por um espírito,
Embora haja exagero em afirmar que se trata de um anjo.
É difícil entender a soberba dos poetas,
Por que se envergonham, quando a fraqueza deles acaba
descoberta.
Que homem inteligente gostaria de ser o país dos demônios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falam
inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu bel-prazer?

Porque hoje se respeita tudo o que é adoentado,
alguém poderá pensar que estou brincando apenas,
ou que encontrei uma outra maneira
de elogiar a Arte através da ironia.

Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
que ajudam a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas direto das clínicas psiquiátricas.

Mas o mundo é diferente daquilo que nos parece,
e nós próprios diferentes de nossos delírios.
Por isso as pessoas conservam a sua silente cortesia,
para obter respeito de parentes e vizinhos.

A vantagem da poesia consiste no fato de lembrar-nos
da dificuldade de manter a identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chave na porta,
e hóspedes invisíveis entram e saem.

Concordo, o que estou contando aqui não é poesia.
Poesias devem ser escritas poucas vezes e de má vontade,
sob uma pressão insuportável e apenas na esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, tenham em nós o seu
instrumento.

quarta-feira, outubro 06, 2004

Alicerçando Imagens #6 - Rene Magritte




The Lovers II, René Magritte Posted by Hello

terça-feira, outubro 05, 2004

Alicerçando Poesia #12 - Alberto da Cunha Mello



ERGONOMIA

Para Norberto Loureiro



O grande trabalho é do amor
sem bronzes, sem assinaturas
no ar do espaço, na hora do tempo,
pólen de Deus nas criaturas;

a palavra quase sem eco
a injetar humos no deserto,

mãos de Franciscos, de Terezas,
que repartem, ocultamente,
suas migalhas sob as mesas;

ou energia sem fronteiras
que acende todas as estrelas.

segunda-feira, outubro 04, 2004

Alicerçando Palavras #9 - Vergílio Ferreira




Os proprietários da opinião alheia decretam às vezes que A ou B é o melhor “prosador” da literatura contemporânea. Porque é que não dizem nunca de um poeta que é o melhor “versejador”?

***********


Escrever cartas. Está hoje fora de moda como tudo. Porque tudo é agora velocidade, ser-se por fora, usar e deitar ao lixo. Não se usa o interior, usa-se a pele. Lê-se pouco o livro, basta a TV, que é um dom divino para o analfabetismo. O telefone dá despacho rápido ao que se comunicava por carta. E é mais caro, que é a vantagem de tudo que tem preço alto, que é ter preço menos comunitário.

A carta. Era do tempo de um viver sossegado, de se percorrer a intimidade de nós e de se estar aí bem. Havia a agitação do que se nos agitasse, mas dizê-lo remansamente conduzia ao sossego. Era do tempo de ter problemas para os desdobrar em escrita e de se ficar aí mais planificado. Era o tempo de se conversar e não de atropelar palavras no momentâneo aturdimento. Era o tempo de se ter alma e não o seu contraplacado. Era o tempo de se ter ideias e não bocados de cortiça. O tempo do silêncio e não dos gritos das massas. O tempo de se estar só e não dos encontrões de se estar em companhia. A carta. Memória antiquíssima a descobrir talvez um dia como os manuscritos do Mar Morto.

***********


Poupa as tuas palavras, guarda as melhores para o fim como o bocado no prato. Qual a última de que te vais servir? Não a imaginas. Mas a última que disseres ou pensares deve resumir-te a vida toda. Vê se a escolhes bem para remate do que construíres. Quando olhas para uma catedral o que fitas mais intensamente é o cimo das torres.

***********


Os grandes movimentos são iniciados por grandes homens e a sua forma clássica é a dos visionários ou profetas. Os seus continuadores são homens médios e a sua forma canónica é a dos práticos organizadores ou dos burocratas. E os seus fiéis seguidores são homens escassos e a sua forma paradigmática é a dos denunciantes ou polícias.

***********


Não te queixes muito das falhas de memória. Porque se soubesses tudo o que soubeste, não te poderias mexer. E então é que não terias nenhuma.

***********


Guarda alguma necessidade para não teres só fastio.

***********


Não queiras saber tudo. Deixa um espaço livre para te saberes a ti.
Conheces a anedota. Essa do homem que andava nu porque estava sempre à espera da última moda para enfim comprar um fato. Talvez não saibas é que morreu de uma pneumonia.

***********


Torna-te o destino de ti próprio.


VERGÍLIO FERREIRA – ESCREVER, BERTRAND EDITORA

sábado, outubro 02, 2004

Alicerçando Estruturas #4 - Siza Vieira




Pavilhão de Portugal, Expo98, Lisboa, 1995-98 Posted by Hello




Vivendas Bonjour Tristesse, Schlesisches Tor, Berlim, Alemanha Posted by Hello

Alicerçando Poesia #11 - Francisco Brines



APONTAMENTO DE VIAGEM

(De automóvel)



As janelas reflectem o fogo do poente
e flutua uma luz cínzea que chegou do mar.
Quer ficar dentro de mim o dia que agoniza
como se eu, ao fitá-lo, o pudesse salvar.

E Quem há que me olhe e que possa salvar-me?
A luz tornou-se negra e apagou-se o mar.




O AZUL

Busquei o azul, perdi a juventude.
Os corpos, como ondas, rompiam-se
em areias desertas. Houve amor
no recanto florido de um jardim
fechado. E quis achar palavras
que alguém pudesse amar, e elas valeram-me.
Estou a chegar ao fim. Cega meus olhos
um desolado azul iluminado.



O DESTINO NÃO É UM LUGAR

O caminho foi longo e houve névoa.
Porém, houve o espaço. Mas agora
adensou-se a névoa até ao ponto
de ser o espaço o muro que já roço.
Nele me deterei e, ao voltar
os olhos para trás, a mesma névoa
far-me-á tentar de novo o mesmo muro,
e, seu eu dirigir o olhar ao céu
para ali me salvar, a negra névoa
irá cegar-me os olhos, e assim será
isso a que chamaste sono eterno.



Tradução de: José Bento

In, A Última Costa, Assírio & Alvim