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terça-feira, dezembro 27, 2005

Alicerçando Poesia # 157 - Manoel de Barros

A namorada

Manoel de Barros



Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por
um cordão
E pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
Era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira
E então era agonia.
No tempo do onça era assim.



Texto extraído do livro "Tratado geral das grandezas do ínfimo", Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 17.

Alicerçando Imagens # 89 - Peter Paul Rubens



The Elevation of the Cross, 1610-11, painel central do triptico da Catedral de Antuérpia, 462 x 341cm



Valeria a pena estudar as linhas de força deste quadro coincidindo com todos os esforços feitos por cada homem e numa impressionante sucessão geométrica.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

Alicerçando Poesia # 156 - Sophia de Mello Breyner


Mar

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.


POESIA, ANTOLOGIA, MORAES EDITORES, 1970, P. 13



quarta-feira, dezembro 21, 2005

BOAS FESTAS


Tanto lume aceso em todo o Portugal, e tanto frio nos corações! Mas não há outro calor, senão o dos cepos a arder. Deus esqueceu-se de nós, ou alguém se esqueceu por ele...


Coja, 24 de Dezembro de 1956



Miguel Torga, Diário VIII

terça-feira, dezembro 20, 2005

Alicerçando Poesia # 155 - Cecília Meireles


BOAS FESTAS




Retrato


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.


Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.


Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Alicerçando Poesia # 154 - Fernando Pinto do Amaral


BOAS FESTAS






Schubert, D.714


Demorámos um ano a aprender
alguns gestos de assombro e maravilha,
a voz da adolescência que desperta
silenciosa, depois do degelo,
e nos derrete a neve que envolvia
o próprio coração, agora aqui
à flor das nossas bocas.


Afogado na tua presença,
repito cada vez com menos estranheza
uma palavra: nós.
A sua vibração é um relâmpago
no crespúsculo da sala
e volto a encontrar a flor azul
que brota dos teus olhos, sempre em busca
de um sobressalto iluminado
quando dizemos: "toma, este é o meu corpo,
revelado por ti."


Sei hoje como é perder a inocência
e conservá-la ainda num recanto
desta sala de espelhos onde vive
a luz da tua imagem entre vozes
que celebram em coro o espírito das águas,
essa primeira esperança confiada
por Deus às nossas vidas.



ÀS CEGAS, RELÓGIO DE ÁGUA, LISBOA, 1977, P. 25



domingo, dezembro 18, 2005

Alicerçando Imagens # 88 - Vincent van Gogh



desenho a lápis, 1890


sábado, dezembro 17, 2005

Alicerçando Poesia # 153 - Alceu sec.VII a.C. - Grécia


Bebe comigo até ficarmos ébrios Melanipo. Pensarás
acaso que uma vez transposto o caudaloso Aqueronte
tornarás a ver a luz do sol? Sísifo rei dos eólios que a
todos superava em engenho julgou ludibriar a morte. Por
duas vezes transpôs o Aqueronte. A terrível castigo o
condenou mais tarde o filho de Cronos sob a negra terra.
Não te iludas. Enquanto jovens gozemos tudo aquilo
que o dia nos pode oferecer.


Tradução de Jorge de Sousa Braga



sexta-feira, dezembro 16, 2005

Alicerçando Palavras # 91 - Friedrich Schlegel


Nova Mitologia

A única coisa que vos peço é que não ponhais em dúvida a possibilidade de uma nova mitologia; pelo contrário, as outras dúvidas, de qualquer proveniência e direcção, serão bem-vindas e permitir-me-ão dar à minha análise maior riqueza e liberdade. E, agora, escutai com atenção as minhas hipóteses, porque apenas são hipóteses o que, considerando o estado das coisas, posso pretender oferecer-vos. Espero que sejais vós a transformá-las em verdade: de facto, se quiserdes assim tomá-las, são proposta em ordem a tentativas.

Se é verdade que a nova mitologia pode surgir, unicamente com as suas formas, das profundidades mais remotas do espírito, o idealismo - o maior fenómeno da nossa época - oferece-nos uma indicação bastante significativa e uma extraordinária confirmação para o que procuramos. O idealismo nasceu precisamente deste modo, como do nada; e, agora, também no mundo do espírito se constituiu um ponto de referência, a partir do qual a energia do homem se pode expandir em todas as direcções e evoluir progressivamente, certa de que não se perderá a si mesma nem o caminho de regresso. A grande revolução propagar-se-á em todas as ciências e em todas as artes. A sua acção já é visível na física, onde o idealismo irrompeu espontaneamente ainda antes de a filosofia chegar a tocá-la com a sua varinha mágica.


Friedrich Schlegel, Diálogo sobre a poesia, II, 1800



quinta-feira, dezembro 15, 2005

Alicerçando Poesia # 152 - Ahmed Arif 1927/91 - Turquia


Cá Dentro


Muro de pedra, já sabes?
Porta férrea, janela cega,
Almofada, beliche, corrente,
Ideal por que vim e por que vou à morte,
Retrato escondido em trevas,
Vós já sabeis?
Cebola verde trouxe-me a visita,
O meu cigarro cheira a cravo
Nos altos, lá na terra, veio a primavera...


Tradução de Dona Zugravescu



quarta-feira, dezembro 14, 2005

Alicerçando Fotos # 19

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Alicerçando Palavras # 90 - do filme Morte em Veneza


Do filme Morte em Veneza de Luchino Visconti baseado na novela de Thomas Mann o diálogo entre o compositor Gustav Aschenbach e o seu amigo.



- Belo. Queres dizer, a tua concepção espiritual de belo.

- Mas negas que o artista possa criar a partir da imaginação?

- Sim, Gustav, isso é exactamento o que eu nego.

- Então, no teu entender, o nosso trabalho enquanto artistas é...

- Trabalho, exactamente! Acreditas mesmo que o belo provém do trabalho?

- Sim, acredito.

- Eis como o belo nasce.Assim. Espontaneamente. Totalmente indiferente ao nosso trabalho. Preexiste à nossa presunção de artistas. O teu grande erro, meu caro amigo, é considerar a vida, a realidade como uma limitação.

- Mas não é assim mesmo? A realidade apenas nos confunde e avilta. Sabes, por vezes, penso que os artistas são como caçadores que atiram no escuro. Desconhecem o alvo e não sabem se o atingiram. Mas não podemos esperar que a vida nos mostre o que a arte é. A criação de beleza e pureza é um acto espiritual.

- Não, Gustav. Não! A beleza pertence ao mundo dos sentidos. Apenas aos sentidos.

- Não podemos alcançar o espírito. Não podemos alçanar o espírito através dos sentidos. É impossível. É apenas através do completo domínio dos sentidos que podemos alguma vez alcançar sabedoria, verdade e dignidade humana.

- Sabedoria? Dignidade humana? De que nos servem? O génio é uma dádiva divina. Não, é uma perturbação divina. Uma chama súbita, pecaminosa e mórbida de dons naturais.

- Rejeito as virtudes demoníacas da arte.

- E estás errado! O mal é imprescindível. É o alimento do génio.

- Sabes, a arte é a mais elevada fonte de educação e o artista tem de ser exemplar. Deve ser um modelo de equilíbrio e força. Não pode ser ambíguo.

- Mas a arte é ambígua. E a música é a mais ambígua de todas as artes. É a ambiguidade tornada ciência. Espera! Ouve este acorde... ou este. Podemos interpretá-los como quisermos. Temos perante nós toda uma sequência de combinações matemáticas imprevistas e inesgotáveis! Um paraíso de ambiguidades em que tu, mais do que ninguém, fazes um regabofe, Não ouves? Não reconheces?

- Pára!

- É tua! A música é toda tua!


domingo, dezembro 11, 2005

Alicerçando Poesia # 151 - Antonio Cisneros - Peru


Contra la flor de la canela



Para hacer el amor
debe evitarse un sol fuerte sobre los ojos de la muchacha,
tampoco la sombra es buena si el lomo
del amante se achicharra para hacer el amor.

Los pastos húmedos son mejores que los pastos amarillos
pero la arena gruesa es mejor todavía.
Ni junto a las colinas porque el suelo es rocoso
ni cerca de las aguas.
Poco reino es la cama para este buen amor.

El cielo debe ser azul y amable, limpio y redondo
como un lecho y entonces
la muchacha no verá el dedo de Dios.

Los cuerpos discretos pero nunca en reposo,
los pulmones abiertos,
las frases cortas.
Es difícil hacer el amor pero se aprende.



Agua que no has de beber






Los Conquistadores Muertos



I

Por el agua aparecieron
los hombres de carne azul,que arrastraban su barba
y no dormían
para robarse el pellejo. Negociantes de cruces
y aguardiente,
comenzaron las ciudades
con un templo.

II

Durante ese verano de 1526
derrumbose la lluvia
sobre sus diarios trajines y cabezas,
cuando ninguno había remendado
las viejas armaduras olvidadas.
crecieron también negras higueras
entre bancas y altares,
en los tejados
unos gorriones le cerraban el pico a las campanas.
Después en el Perú nadie fue dueño
de mover sus zapatos sin pisar a los muertos,
sin acostarse junto a las blancas sillas o pantanos
sin compartir el lecho con algunos
parientes cancerosos.
cagados por arañas y alacranes,
pocos sobrevivieron a sus caballos.



Comentarios Reales



sábado, dezembro 10, 2005

Alicerçando Poesia # 150 - Manuel Bandeira


ESTRADA


Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho
manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.


sexta-feira, dezembro 09, 2005

Alicerçando Palavras # 89 - Luis Pareyson


O artista estuda amorosamente a sua matéria, escruta-a até ao fundo, espreita o seu comportamento e as suas acções; interroga-a para poder comandá-la, interpreta-a para poder domá-la, obedece-lhe para poder dobrá-la; aprofunda-a para que revele possibilidades latentes e adequadas às suas intenções; escava-a para que ela própria sugira novas e inéditas possibilidades a tentar; segue-as para que os seus naturais desenvolvimentos possam coincidir com as exigências da obra a fazer; indaga os modos em que uma longa tradição ensinou a manipulá-la para fazer com que ela germine com inéditos e originais ou para prolongá-los em novos desenvolvimentos; e, embora a tradição de que a matéria está carregada pareça comprometer a sua ductilidade e torná-la pesada e lenta e opaca, ele procura recuperar a sua frescura virgem, que seja tanto mais fecunda quanto mais inexplorada; e, se a matéria for nova, ele não se deixará espantar pela audácia de certas sugestões que parecem sair dela espontaneamente nem se recusará à coragem de certas tentativas nem, muito menos, se subtrairá ao duro dever de penetrar nela para melhor identificar as suas possibilidades. [...] Não se trata de dizer que a humanidade e a espiritualidade do artista se figura numa matéria, tornando-se complexo, formado, de sons cores palavras, porque a arte não é figuração e formação da vida da pessoa. A arte não é senão figuração e formação de uma matéria, mas a matéria é formada segundo um modo irrepetível de formar que é a própria espiritualidade do artista que toda se fez estilo.

Luis Pareyson, Estética, 1954



quinta-feira, dezembro 08, 2005

Alicerçando Poesia # 149 - Ada Negri - 1870/1945 - Itália


Multidão



Uma folha tomba do plátano, um frémito sacode o imo do cipreste,
És tu que me chamas.
Olhos invisíveis sulcam a sombra, penetram-me como à parede os pregos,
És tu que me fitas.
Mãos invisíveis nos ombros me tocam, para as águas dormentes do lago me atraem,
És tu que me queres.
De sob as vértebras com pálidos toques ligeiros a loucura sai para o cérebro,
És tu que me penetras.
Não mais os pés pousam na terra, não mais pesa o corpo nos ares, transporta-o a vertigem
obscura


És tu que me atravessas, tu.


tradução de Jorge de Sena

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Alicerçando Fotos # 18



Pedro Peralta aqui


terça-feira, dezembro 06, 2005

Alicerçando Palavras # 88 - Howard Kanovitz




segunda-feira, dezembro 05, 2005

Alicerçando Poesia # 148 - Teresa Rita Lopes


Tenho Três Cidades Natais


Nasci em Faro
sem querer
Três meses depois do meu pai morrer.
Deve ainda correr-me no sangue o amargo júbilo
de minha mãe quando me pariu.
Talvez por isso minhas raras alegrias têm sempre
o travo ácido das lágrimas.)
Andei nessa cidade como um menino numa casa com demasiados
móveis.
Não sei o que me faltou ou sobrou
mas vivi sempre tem-te não cais
a buscar o equilíbrio no fio reteso de lado a lado
do horizonte.
É verdade que havia ao fundo da minha rua muito ao longe
um certo azul
com quem trocava mensagens ao vento.
Afinal desapareceu: devem-no ter demolido quando construíram
os novos prédios altos que roubaram a paisagem à minha rua.



Da infância recordo especialmente o cheiro morno da seda preta
do vestido da minha Mãe
jovem viúva de luto carregado
e o perfume das açucenas e das violetas do quintal
e o terraço aonde me treinava para ser bailarina ou equilibrista
Nas festas e nas férias havia a horta dos avós de Cacela
o tanque a sombra das larangeiras
o doirso tépido e trémulo dos animais
e sobretudo ah sim! o deslumbramento do mar
ao alcance do olhar.
Um dia mal aprendi a ler foi a primeira menstruação de sílabas
e nunca mais parei de sangrar versos.


Lisboa era a Cidade Prometida
onde nascí outra vez aos dezoito anos
mas só lá fiquei o tempo de uma metamorfose: até aos vinte e cinco.
Foi um grande amor
de enlevados encontros em íngremes miradouros
esconsos cafés e ruas mal calçadas
ainda palpitantes de pregões
sobretudo os dos ardinas ao cair da noite.
Aqui me desentranhei em gratuitas palavras paridas como os filhos
sem porquê
e peças de teatro e revolucionárias acções clandestinas.
Por essas e por outras é que daqui abalei uma manhã para Paris
esse Paris de todos os foragidos de então.


Paris foi a minha terceira cidade natal.
Aí nascí de novo
nua e com frio.
Aí me vi a braços com a minha sombra.
Na cidade em que as mulheres se aplicam a mobilar a vida
com marido e mobílias completas(de quarto, sala, escritório,
living-room) eu renascia numa água-furtada num sexto andar
sem elevador
mas com todos os telhados de Paris e estenderem-me
o dorso para chagalianas viagens.
Quem nunca soube o que é a fome
de espaço ignorou também o gozo de matar
grão a grão
palmo a palmo.)


A minha obélia era recuperada na rua: caixotes
vazios depois dos mercados.
Lembro-me que uma das minhas mansardas
tinha por única janela uma clarabóia no tecto que eu abria
e fechava com um cabo metálico para renovar o ar
até que um dia
nevou
e eu vi flocos de neve a poisar na minha cama: a clarabóia
não tinha vidro.
Em Paris apanhei o susto de me sentir adulta e só
a sós comigo
e com o tempo redondo das mesas dos Cafés
afagada ilha em que
plantava sílabas
e trémulas palmeiras a cuja sombra me acolhia
tardes inteiras
a construir meus corais de palavras para emergir
do abismo.


Cá estou de novo no meu segundo berço. Volto às vezes ao primeiro
e também ao segundo
à procura dos baguinhos de milho que por lá
espalhei
como a menina do conto da infância
para achar o meu regresso
a mim
ao mim de então.
Agora moro instavelmente em casas diversas
e dispersas
minhas tendas de nómada.
Afinal sempre andei de terra
em terra
de casa em casa
de mim em mim
fiel ao mesmo céu
em que vou desenhando uma constelação qualquer
que projecte
e reúne as soltas faúlhas do meu vagabundo fogo.


sábado, dezembro 03, 2005

Alicerçando Palavras # 114 - Pablo Picasso


Uma pintura não é preconcebida nem pre-determinada; enquanto está a ser feita, segue a inconstância da ideia.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Alicerçando Poesia # 147 - Sidónio Muralha 1920/1982


Dois Poemas da Praia da Areia Branca


1

Na praia da Areia Branca
os búzios não falam só de mar:
- falam das pragas, dos clamores,
da fome dos pescadores
e dos lenços tristes a acenar.


Búzios da Praia da Areia Branca:
- um dia,
haveis de falar
unicamente do mar.



2

No fundo do mar,
há barcos, tesoiros,
segredos por desvendar
e marinheiros que foram morenos ou loiros


Ali, não são morenos nem são loiros
- são formas breves, a descansar,
sem ambições para os tesoiros
e de cabelos verdes dos limos do mar.


Serenos, serenos, repousam os mortos,


- enquanto o mar
ensina o mundo a falar
a mesma língua em todos os pontos.




PASSAGEM DE NÍVEL, Novo Cancioneiro,1942



quinta-feira, dezembro 01, 2005

Alicerçando Palavras # 113 - Arturo Pérez Reverte


Luis de Ayala suspirou, amistosamente dissimulado.

- O progresso, don Jaime. Mágica palavra! Os novos tempos, os novos costumes, chegam a todos. Nem mesmo o senhor está imune.

- Apresentando-lhe antecipadamente as minhas desculpas, creio que se engana, don Luis - era evidente que o mestre de armas se sentia muito incomodado com o rumo que a conversa havia tomado. - Concedo-lhe que considere toda esta história como o capricho profissional de um velho mestre, se assim o quiser. Uma questão... estética. Mas daí a afirmar que tal coisa suponha abrir a porta ao progresso e aos novos costumes, vai um abismo. Já tenho anos a mais para encarar a sério alterações notáveis no meu modo de pensar. Considero-me a salvo, tanto das loucuras da juventude como de dar importância de maior ao que é apenas, por minha fé, um passatempo técnico.

O Alumbres sorriu aprovadoramente perante a comedida exposição de don Jaime.

- Tem razão, mestre. Sou eu que lhe devo desculpas. Por outro lado, o senhor nunca defendeu o progresso...

- Nunca. Toda a minha vida me limitei a sustentar uma certa ideia de mim mesmo, e é tudo. É preciso conservar uma série de valores que não se depreciam com o passar do tempo. O resto são modas do momento, situações fugazes, mutáveis. Numa palavra, ninharias.

O marquês olhou-o fixamente. O tom leve da conversa dissipara-se completamente.

Arturo Pérez-Reverte, O Mestre de Esgrima,edições Asa, 2002